A TIA DE UMA CIDADE
Trabalho em um local, que não me permite ver muito de perto o progresso de Linhares. Assim, quando vou ao centro e vejo as novas construções, que há tempos conferem à cidade um ar de modernidade, eu me recordo do anoitecer de 13 de março de 1968, quando eu desci de um ônibus na rodoviária, em frente ao local onde hoje fica o Banco do Nordeste. Daquele ano até hoje, toda a paisagem mudou, espantosamente, e tenho muito orgulho de poder dizer que assisti a tudo em “doses homeopáticas”. Mas o que eu queria mesmo era poder dizer que sou filha dessa cidade e de aqui ter nascido em 1917, talvez.
Como o Bairro Novo Horizonte, onde eu moro hoje, seria, muito provavelmente, uma distante fazenda; eu queria ter nascido, crescido e adolescido na rua da Conceição, perto dos pioneiros da história linharense no século XX: Dª Olinda e Sr. Joaquim Calmon, Dª Carmosina e Sr. Anthenor Elias, Dª Maria e Sr. Antonio Azevedo, Dª Mercedes e Sr. Paco Arnal, Dª Lucy e Sr. Vitor Arnal, Dª Noêmia e Sr. Gerônimo, Dª Diva e Sr. Waldir Durão, Dª Mariquinha e Sr. Agnelo Guimarães, Dª Castorina e Sr. Álvaro Durão, Dª Aurora e Sr. Humberto Neves Calmon Fernandes... Preferencialmente, eu queria morar em frente à pracinha da Casa da Câmara, vizinha de Dª Graciosa e do Sr. José Candido Durão, de Dª Dadá e do Sr. Talma Drumond Pestana.
Quando meninas, eu, a filha do casal Pestana e outras amiguinhas nossas, subiríamos em pés de jenipapo para vermos os ninhos de passarinhos, correríamos dos gansos pela relva da nossa rua querida, brincaríamos de cozinhadinhos sob o pé de fruta-pão que havia na descida do rio Pequeno, e nas tardes quentes nos banharíamos em suas águas. Ao anoitecer, cantaríamos roda, brincaríamos de piques diversos ou de concursos como os da Rádio Nacional, cantando e recitando. Nas noites muito escuras, nós nos divertiríamos pegando vagalumes para prendê-los em vidros transparentes e fingirmos que eles eram nossas lanternas.
Quando moças, nas sextas-feiras santas, eu acho que nós bateríamos muitas palmas para a filha do Sr. Talma, ao vê-la e ouvi-la cantando igual a Verônica, na procissão do Nosso Senhor morto. Talvez eu até ousasse me inscrever para participar, em algum domingo, do programa de calouros, comandado por ela, no bar do Sr. Gumercindo Pratti. Quem sabe eu não poderia tentar imitá-la, cantando a Ave Maria de Schubert, como sempre fazia às 18horas, após Maria José Tristão rezar pelo alto falante a prece da Mãe do Nosso Senhor?
Infelizmente não foi assim, fui nascer 37 anos depois daquela que o povo de Linhares aprendeu a amar em retribuição ao grande amor que ela dedicou aos filhos dessa terra. Uma senhorinha de 96 anos, que continua morando no mesmo lugar onde sempre habitou: ao lado da igrejinha velha, em frente à Praça 22 de Agosto. Procuro em suas mãos a força de outrora para reparar brinquedos e doá-los durante muitos natais às crianças mais humildes de nossa cidade, mas não a encontro. Tento ouvir sua voz declamando os longos versos buscados em sua memória prodigiosa, mas não a ouço. Busco o brilho dos seus olhos, mas só o vejo quando eles fitam Guerino Zanon ou ouve o nome do seu benfeitor, o Sr. Pedro Grassi.
Muitos de seus vizinhos de outrora já se foram, não sabemos quanto tempo mais Deus nos permitirá tê-la conosco, e também ignoramos quando chegará a nossa hora de partir. Então, escrevo essa crônica e lego-a às gerações que nos sucederão, para que saibam que ao lado da igrejinha velha morou uma mulher, cujo o nome tem origem no latim e significa “doce, terna, meiga”. Fazendo jus a esses adjetivos, há quase um século, ela tem sido exatamente assim e, talvez por isso, ela se tornou, espontânea e carinhosamente, a “Tia Dulce” de todos os filhos e agregados dessa cidade.