O PONTO - ZERO - TEMPO PARA OS DOIS LADOS. PRÓLOGO

Caímos no corredor do meu apartamento. Caí por cima de Murilo, que chegou a perder o fôlego. Levantei e entrei correndo no quarto. Peguei as chaves do Opala.

- Levanta! Vamos embora, agora!

Murilo demorou a levantar. Eu o segurei e o ajudei a levantar. Saímos correndo pelo prédio rumo a garagem. Entramos no carro e saímos cantando pneu, ainda ouvindo os gritos do pessoal na calçada.

- Aonde vamos? – perguntou Murilo.

- Impedir o que tem que acontecer!

- Como? Aonde?

- Eu sei aonde. Como eu ainda to pensando.

- Aonde?

- Já vai saber.

- Porque você não responde uma pergunta?

- Porque eu não sei, eu to pensando, porra, dá pra calar a porra da boca!

Murilo ainda me olhava quando passamos a 120 km pelo semáforo perto do aeroporto. Quase fomos atingidos por um ônibus.

- Espero não morrermos antes de chegarmos lá! – Murilo falou.

Ultrapassei dois carros de uma vez, me posicionei na frente de um ônibus.

- Segura ae! – falei. E girei o carro de uma vez, para entrar na rua do banco. Só ouvi Murilo xingando. Estávamos quase chegando. Entrei na quarta rua á direita. Em frente a uma casa. Murilo estacou.

- Essa casa...

- Sai do carro! – falei.

- Como?

- Sai, sai do carro! Sai do carro! – disse, enquanto eu saía pela janela e corria em direção a porta da casa. Murilo foi atrás. Ao se aproximar da porta, eu parei. Murilo ficou ao meu lado.

- É isso aí. É o primeiro passo. Vai. – falei.

Ouvimos um grito lá dentro. Como se fosse atingido por um raio, Murilo meteu o pé na porta. Lá dentro, uma garota estava de bruços na mesa.

- Puta é você, e é assim que se faz com vadias! – disse o rapaz em frente a garota. Ele abaixou e ia colocar a mão entre as pernas da menina, quando outras mãos o jogaram para longe. Ele foi bater na parede.

A menina levantou-se e viu um rapaz enfurecido na frente dela. O rapaz nem deu atenção. Foi andando em direção ao rapaz, que se levantava.

- Quem é você? – disse ele.

Murilo não respondeu. Socou-o no rosto, e o rapaz cambaleou até a parede. Ele defendeu o outro golpe e acertou Murilo, que parece não ter sentido nada. A luta continuou. A menina aproveitava o momento para fugir. Quando alcançou a porta, foi parada por outra pessoa.

- Calma, Fernanda. – eu disse.

- Quem é você? Como sabe meu nome? – ela perguntou.

- Tenha calma, eu explico, mas não agora. Isso acaba agora.

- O que acaba agora?

- Tudo! – falei.

Fernanda olhou para trás e viu Murilo espancando o rapaz.

- Essa... Foi... A coisa mais nojenta... Que alguém já fez... Seu desgraçado.... Desgraçado filho da puta! – Murilo falava, enquanto socava o rapaz.

Quando já estava cansado, Murilo levantou. Os punhos cerrados, rosto respingado de sangue. Passou a mão no rosto, tentando recobrar o equilíbrio. Andou para trás, encostou-se na mesa. Ainda viu o rapaz, com o rosto totalmente pintado de vermelho e deformado, respirando forte.

- você está bem, Fernanda? – perguntou Murilo, sem se virar.

- Como vocês sabem quem eu sou?

Murilo virou-se para responder, e então o rapaz levantou-se, pegou as drogas no sofá e saiu se jogando pela janela. Olhei a cena assustado.

- vamos deixá-lo ir... – disse Murilo.

- Não. – disse. – Ainda não acabou. Vamos!

- Para onde? – perguntou Fernanda.

- Não sei. – disse Murilo. – terminar a história.

É isso aí, Murilo, pensei. É hora de terminar a história. Amanda esperava por isso. Entrei no carro e esperei Murilo entrar. Fernanda foi junto, sentando no banco de trás do carro. Cantei pneu de novo, e vi o rapaz partindo com o carro dele, um Vectra GT 2010. “Agora era hora de acertar as contas”.

Corri atrás do carro, sempre desviando das motos e dos outros carros. Murilo praguejava, Fernanda já estava gritando. Desviar do carro com um Vectra Hatch é fácil, tenta fazer isso com um Opala Sedan! Ele virou a direita passando pelo banco, seguiu reto um pouco e entrou na terceira rua a direita. Na nossa frente, uma praça. Murilo começou a gesticular e acenar.

- É aqui, Paulo, é aqui!

- Tem certeza? – perguntei.

- Tenho, é ali naquele poste, o poste...

Nessa hora, o Vectra, que tinha tentado passar direto por uma garagem em que um carro saía bateu de lado e quase rodou. Ele retomou a velocidade do veículo, mas eu já tinha o ultrapassado.

- Vira à direita! Á direita! – Murilo gritava.

Mas fiz totalmente o oposto. Passei a praça toda na quinta marcha, e acelerando na contramão. Do outro lado, vi o Vectra azul recuperando velocidade. E uma menina vinha correndo. Ainda estava longe de chegar á rua. Engatei a sexta, acelerei, e na hora que o Vectra me viu, era tarde. Puxei o freio de mão, joguei a direção para a esquerda e o carro virou-se violentamente. O Vectra não teve tempo nem de frear. A batida lançou meu carro contra o dele, e colidimos de lado. Meu carro rodou enquanto víamos no outro carro, os air-bags serem ativados. Paramos em cima da calçada. A menina passou correndo, olhando para o acidente.

Ainda estávamos zonzos. Murilo bateu a cabeça no painel, e eu já tentava sair do carro, mesmo totalmente desnorteado.

- Paulo, aonde você vai?

- Ainda não acabou, Murilo... – disse, saindo do carro.

- Porra... – disse Murilo, saindo do carro pela janela. Fernanda estava deitada no banco de trás, resmungando alguma coisa.

Saí correndo para o lado oposto de onde Amanda veio. Murilo veio atrás de mim.

- Murilo, não! – gritei. – Vai atrás de Amanda! Agora!

Ele entendeu o que estava acontecendo. Virou-se e saiu em disparada. Não sem antes ver, de relance, a pessoa parada perto do poste. A mesma pessoa que viu antes, quando estava no carro com Fernanda.

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1

Uma arma estava apontada para Edgar. O dono dela tremia de ódio.

- Agora acaba, seu filho de uma puta desgraçado!

- calma, cara! O que aconteceu?

- O que aconteceu? O que aconteceu? - o rapaz perguntava, com lágrimas nos olhos. – Você fodeu nossa vida! Fodeu com a vida da minha irmã, seu desgraçado! E ainda pergunta o que aconteceu?

- Como? Mas quem é você?

- Quem sou eu? Você vai saber! – disse, jogando uma foto em cima dele. Edgar ficou pálido por um instante.

- Cara... Eu sei que você está confuso, eu sei que está... Mas não é isso que está pensando...

- Não? – rosnou o rapaz. – você acabou com a alegria da minha irmã!

E então deu uma coronhada em Edgar, que caiu de joelhos.

- Henrique... Seu nome é Henrique. Eu te vi na faculdade.

- É, seu merda. Eu te vi também. O que aconteceu? Agora você só paquera garotinhos? Como o João, seu pedófilo viado de merda!

- João?

- Sim. Ele sempre esteve com você. Ele era um deles aí na foto, sabia?

Edgar olhou a foto. E começou a chorar.

- Eu sinto muito... Eu sinto tanto...

- Não se preocupe... Você não vai sentir por tanto tempo... – e engatilhou a arma.

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2

- Porque? – perguntava Mary. Olhos vermelhos.

- Eu sinto muito, Maria... – dizia João. – eu tentei te avisar várias vezes.

- Avisar o que?

- Que... Que eu não posso ter nada com você...

Mary olhava para o chão. Estava completamente inconsolável.

- Eu sempre te amei, João. Desde o primeiro momento...

- O Henrique gosta de você.

- Eu não quero o Henrique. Eu quero você.

- Não posso. Sinto muito.

Era como se um buraco fosse aberto no chão e tragasse Mary de uma vez. Ela não acreditava. Tinha colocado a fotografia em um porta-retrato para João, e ele nem sequer olhara.

- O que eu tenho, que você não gosta? – perguntou Mary.

- Maria, você não entendeu, não é?

- Não entendeu o que?

- O lance todo... Sobre mim... Sobre o Henrique...

Mary pensou por um tempo. Depois, olhou para João com olhos assustados que se tornaram um olhar de nojo.

- Vocês? Vocês dois?

João assentiu com a cabeça. Mary sentou-se no meio-fio, consternada.

- Vocês dois...

- Maria, eu...

- Pára de falar. – disse Mary. – Cala a boca.

- Maria, eu queria te falar...

- Cala a boca, João! – gritou Mary. Ela tremia de raiva.

- Espero que me perdoe... – disse João.

- Não... – disse Mary, enquanto quebrava o porta-retratos, e tirava um pedaço de vidro. Sentiu-o cortando sua mão. Aquele pedaço ia servir. – espero que você me perdoe, João.

E então virou-se para João. Na hora que Amanda chegava. E outra pessoa mais rápida que ela também se aproximava.

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1.1

Corri o máximo que pude, enquanto Murilo pegava o caminho inverso. A praça era grande para se percorrer a pé, então eu tinha que rezar para um milagre.

Avistei a escolinha na esquina. Havia duas pessoas conversando. De repente uma delas mostrou uma foto para a outra, que disse alguma coisa e foi agredido. Foi aí que eu notei uma arma na mão da outra pessoa. Essa pessoa era justamente quem eu pensava. Henrique estava acertando as contas com o professor. Enquanto corria, mil pensamentos passavam pela minha cabeça. Será que eu conseguiria chegar a tempo? E porque aquilo tudo ainda tinha que acontecer? O plano principal era somente salvar Amanda, e ela estava viva. Não foi atropelada. Fernanda estava dentro do meu carro. Já havia mudado muita coisa. O que mais estava errado? Onde estava o erro a ser reparado agora? Estávamos correndo contra o tempo agora.

Atravessei a rua sem olhar para os lados, um dos carros freou em cima de mim, mas não me importei. Aproximando-se do rapaz, ele me viu, e involuntariamente, milissegundos após eu o alcançar, ouvimos um disparo, e um corpo caía lentamente, olhando assustado para nós. Joguei o corpo contra o rapaz, que bateu na árvore e largou a arma. Ficamos frente a frente. Ele ameaçou correr para pegar a arma, mas recebeu um chute no rosto. Peguei a arma e apontei para ele. Era o fim.

Eu arfava de cansaço. O rapaz me encarava, espumando de ódio e dor.

- Quem é você? – perguntou.

- Você não vai fazer isso, Henrique. Você não vai... Não vai. Acabou. Ele pode ir para a cadeia, mas você não vai terminar desse jeito.

- E quem é você para decidir isso? – ele esbravejou.

- Nesse exato momento? – perguntei. Lembrei de tudo que passei desde que tive o sonho de manhã. Lembrei dos encontros que tive, da briga com Murilo, lembrei de Fernanda, que agora estava salva no meu carro. Amanda estava viva. Mas não era suficiente. Meu braço doía demais para segurar a arma. Mas não precisava dela.

Henrique me viu desengatilhando e esvaziando a arma. Deixei cair o pente de balas e lancei tudo para longe. Era só eu e ele agora.

- Nesse exato momento, eu sou Deus! – e me lancei contra Henrique com toda a fúria possível.

Henrique não soube o que o atingiu, mas ele não era qualquer um. Logo, éramos duas pessoas trocando socos e chutes. Acertei um gancho de esquerda na hora que ele abaixou a guarda. Ouvi-o ganindo de dor. Ele me acertou direto no rim, e me fez recuar. Antes de dar os passos para trás, atingi-o no nariz. Um barulho de osso rompendo e ele segurava o nariz, rosnando de dor.

- Eu vou acabar com você... – ele falava.

- Você é só mais um que fala isso. Eu já to cansando disso.

Investi contra ele. Dessa vez ele caiu de vez. O golpe o fez bater com a cabeça na parede antes de cair desacordado. Uma dor aguda atingiu minha mão. Acho que quebrei alguns dedos. Mas estava acabado. Olhei para o corpo do professor. “Não tinha conseguido salvá-lo”, pensei. Aproximei-me dele mas não mexi no corpo.

- Merda! – resmunguei.

De repente, o corpo do professor se mexeu, como um espasmo, e ele começou a se contorcer de dor. Quando virou de frente para mim, vi o lugar onde a bala tinha atingido. Ele estava vivo. A bala alojara-se no braço. Ele me olhava, assustado.

- Quem é você? – perguntou.

- Você quase morreu. Mas isso não impede de te responsabilizar pelo que fez à Amanda. Você é responsável pelo futuro de uma pessoa e o destruiu. Henrique tinha razão em pelo menos uma coisa: você é um merda.

- Eu sinto muito... Eu sinto muito...

- Cale a boca. – falei. – Eu to cansado de ouvir isso hoje. Fica quieto, por favor.

Sentei-me no meio fio, totalmente desorientado, de tanto cansaço. Mas lembrei que ainda havia assuntos pendentes do outro lado. Xinguei um pouco, arranquei os cadarços dos tênis de Henrique e amarrei seus pulsos. Peguei sua arma, que estava perto dali.

- Agora – falei com Edgar. – Isso é só por precaução. – parei e pensei um pouco. – e um pouco por prazer também.

Acertei uma coronhada em Edgar e o mesmo desmaiou. Carreguei o corpo de Henrique até o outro lado da praça, com toda a rapidez que podia. Estava me aproximando do Vectra azul, quando vi o rapaz começando a despertar. Larguei Henrique no chão, abri a porta do carro, arranquei o rapaz de dentro, e olhei bem para ele. Não tinha sofrido nada. Nem um arranhão.

- O que... Que aconteceu? – ele perguntou.

- Eu já te explico. – disse.

Segurei a cabeça dele e choquei contra o vidro do carro. Ele perdeu os sentidos e uma poça de sangue formou-se onde a cabeça dele ficou.

“Agora só falta uma parte”, pensei. Eu nunca sentira tamanho ódio. Corri para o outro lado da rua. Ouvi um grito e vi uma menina correndo em minha direção. Não distinguia no começo, até que vi os cabelos negros e o rosto com aspecto nipônico. Mary corria com a roupa suja de sangue.

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2.1

Mary investiu contra João com o pedaço de vidro. O corte no braço foi profundo. Ele gritou e recuou. Mary investiu de novo. Lançou um golpe cego contra o rapaz. Uma figura passou por cima dos dois e impediu o golpe. O vidro ficara enterrada em alguma coisa, e então Mary soltou a arma. Abriu os olhos e viu uma pessoa com cabelos mais ou menos grandes gritando de dor. João, atrás dela, olhava sem entender nada.

- Porra! – gritou Murilo. – Com mil caralhos!

Ele tentou puxar o vidro, mas não conseguiu. Seus olhos estavam vermelhos de tanta dor. Mary ainda não entendia nada, e muito menos João.

- Mary! – gritaram.

A menina virou-se e viu sua amiga. As duas abraçaram-se, chorando.

- Amanda, eu quase, eu quase... – Mary dizia, soluçando.

- Você quase o que? – perguntou Amanda.

Na hora que ia responder, Mary viu a sombra de alguém e desviou. O golpe de uma barra de ferro acertou Amanda em cheio. Ela nem teve tempo de reagir. Caiu como um boneco de pano. Na frente dela, João, com um cano rufava de raiva.

- Sua desgraçada! – dizia. – você vai me deixar em paz!

Quando armou outro golpe, Murilo aparou o pedaço de ferro e o acertou com uma cotovelada na nuca. João caía por cima de Amanda. Mary olhou a cena e saiu correndo, gritando.

- Ai meu Deus! Ela morreu! Ela morreu! – gritava, enquanto Murilo olhava a cena, sem entender nada. A mão latejava de dor e a cabeça doía tanto que ele caiu de joelhos. Entreabriu os olhos e viu uma pessoa aproximando-se, correndo. Reconheceu-a na hora. E nunca tinha ficado tão feliz em vê-la chegando.

0:01

Segurei Mary pelos braços, tentando acalmá-la. Meu braço estava dormente, não sabia porque, e ainda estava com os dedos quebrados. Foi realmente difícil.

- Calma, Mary! Acalme-se! – disse.

- Ela morreu! Ela morreu, eu vi, eu vi quando ela morreu, ele a acertou em cheio... – e soluçou.

A notícia atingiu-me como uma bomba. Larguei Mary ali mesmo e comecei a correr. Cambaleei um pouco, as pernas fraquejaram. Vi a silhueta de uma pessoa ajoelhada. Quando me aproximei, reconheci Murilo. Ele estava perto de duas pessoas.

Caí, de tanta fraqueza. Levantei com esforço e dei mais uns passos. Murilo estava com um pedaço de vidro traspassado na mão. Ele rangia os dentes por causa do choque.

- Murilo! Murilo! – gritei, sacudindo-o – Olha pra mim!

Ele abriu um olho, e então olhou para a menina ao lado, caída.

- Paulo... – sussurrou – ela... Ela está...?

Olhei para Amanda, o corpo inerte. Fiquei sem reação no momento.

- Ela está morta, Paulo? – Murilo rangia os dentes.

Depois de tudo que passamos, a história ia acabar assim. A única pessoa inocente da história, que vínhamos tentando salvar, estava ali, ao nosso lado, morta. Falhamos em absolutamente todos os passos do plano. Não achamos a alma de Amanda no outro lado. Não passei despercebido dos obcessores, fui visto pela sensitiva, Murilo deixara-se levar pelas emoções. E no final, tínhamos um acidente de transito, uma pessoa baleada, duas inconscientes, uma drogada no meu carro, um ferido desmaiado, Murilo com a mão toda arrebentada e Amanda estava morta.

Rastejei para perto de Amanda. Não sabia como encostar no corpo. Não sabia o que fazer. O braço estava numa posição totalmente estranha. Parece que um ombro não existia. Estava completamente vermelha de sangue e estava branca. Aproximei mais, e tirei o cabelo de cima do seu rosto. Ela respirava com dificuldade, mas estava viva.

- Ela tá viva, Murilo... – disse.

Murilo resmungou alguma coisa que eu não entendi. Ele caiu de lado e ficou ali, respirando. Olhei em volta, vi Mary chorando, e algumas pessoas já se aglomeravam no local. Olhavam dentro do carro, algumas iam socorrer Edgar e Henrique. Eu já não ligava para nada. Só caí no chão e fechei os olhos. Estava acabado. Procuramos Amanda pelo outro lado, só para ver que seu espírito estava ali o tempo todo. As informações foram reveladas no momento certo. Por isso que o ponto-zero não captou nada. Lembrei da teoria da proximidade dos mundos. Algumas coisas poderiam afetar o ponto-zero. Talvez aquele fato afetasse, eu não sei. Pensei em todas as pessoas que se envolveram naquilo tudo: Edgar, o professor; Lucas, irmão de Edgar; Henrique, irmão de Amanda; João, amante de Henrique; Mary, amiga de Amanda e amor da vida de Henrique; e por fim, Amanda.

Peguei as fotos, com o resto de força que tinha. A do professor virara não um terço, mas uma mancha de sangue. A foto de João mostrava-o inconsolável. A de Mary mostrava o espelho rabiscado e quebrado. A foto de Lucas mostrava uma cama de hospital. O retrato de Henrique estava totalmente borrado. A de Fernanda mostrava um ursinho de pelúcia em cima de uma cama. A de Amanda mostrava-a sorridente, acenando. Das sete, só sobraram cinco. Evitei que o professor morresse, por isso ele sumiu da foto. Murilo salvou Fernanda dentro da casa, e ela ia seguir outro rumo.

Amanda nunca saberia que estava morta. Esse foi o contato que ela manteve conosco. Ela já estava em contato desde a hora que entramos pelo espelho. Por isso não adiantava nada decidir encontrar a pessoa da foto. Ela mostrava o que tinha que ser mostrado, na hora certa. Mary ia viver a vida dela, mesmo sabendo que não teria João ao seu lado. Provavelmente, quase todos se safariam daquela situação. Menos uma. Então vi que a resposta estava na cara o tempo todo.

A primeira pessoa que salvamos, e na verdade, a única que realmente merecia ser salva, era Fernanda. Ela era a pessoa que tinha o poder para mudar tudo. Quando Murilo atacou Lucas na casa de Fernanda, ele salvou a menina de um futuro terrível. Ela não matou Amanda.

Coloquei a mão que ainda funcionava no rosto e ri um pouco. “Que merda!” pensei, rindo. Estava tudo planejado. Salvar uma pessoa seguindo o rastro de outra. O cenário estava todo criado, o homem na minha sala tinha razão. Mas Fernanda era a pessoa que vivia seu ponto-zero. Ela não era notada. Não era ninguém. Agora seu relógio correria normalmente.

Olhei para os lados, a ambulância já tinha chegado. Vi algumas pessoas vindo em nossa direção. Na praça, um vulto mexia-se vagarosamente. Antes de apagar, poderia jurar que a figura usava um terno risca-de-giz.

PROLOGO

Murilo estava puto comigo. Ia demorar um bocado de tempo para ele voltar a ter os movimentos da mão. Ficamos no mesmo quarto da enfermaria.

- Porra, pelo menos a gente terminou salvando a Amanda, cara. – eu falava. Estava totalmente sedado, e tranqüilo como nunca.

- Quando eu melhorar, eu vou te dar uma surra... – resmungava Murilo.

- Vamos apertar as mãos e esquecer isso... – disse.

Murilo olhou a mão enfaixada e entendeu o trocadilho. Ele riu.

- Não sei porque eu sou seu amigo...

- Diz logo que me ama...

Nós rimos, as enfermeiras olhavam pensando que lá estavam dois idiotas. Uma pessoa entrou na sala.

- Com licença – disse – eu sou da polícia e preciso fazer umas perguntas. Se vocês não se incomodarem.

Olhei para Murilo de canto de olho. Agora as coisas iam feder mesmo. Como íamos explicar aquilo tudo? Nós praticamente descemos o braço em mais de meia dúzia de gente.

- Primeiramente, de quem é o Opala preto? – perguntou.

- Meu, doutor...oficial...capitão... Policial... Senhor... – respondi. Estava ficando completamente dopado.

Murilo riu mas parou quando o policial o encarou.

- Sorte a de vocês que a motorista não sofreu nada.

Nos entreolhamos.

- A Motorista? – perguntei.

- Sim. Fernanda, é o nome dela. Estava tão dopada quando a achamos que ela não conseguia ligar o carro. Mas sabemos que ela estava perseguindo o namorado que estava fugindo com a droga toda. Já tínhamos denúncias registradas sobre ele há tempos. Lucas, o nome dele. Totalmente esquizofrênico.

- Ah sim... – Murilo falou. – menos mal.

- Mas mesmo assim deixar o carro com a chave na ignição. Tenham mais cuidado, ok?

Fiz que sim com a cabeça, Murilo se segurando para não rir.

- Outra coisa. Foi sorte alcançarem o rapaz com a arma. Ele ia matar aquele sujeito... Edgar... Esse nem é o nome verdadeiro dele. É acusado de pedofilia, mas sempre desaparecia. Não sei porque ele voltou para cá. Amanda vai prestar queixa contra ele, e estamos buscando outras vítimas para vir reconhecê-lo. Mas mesmo assim Henrique vai responder por lesão corporal e tentativa de homicídio.

- E você, aí, tá me achando com cara de palhaço? – perguntou para Murilo.

- Desculpe... – disse.

- Foi coisa de burro se meter na briga daquele casal. Você podia ter morrido. Maria está sob supervisão e João está preso. Se prestar queixa, os dois vão responder processo. Você vai prestar queixa?

- Eu não sei... – disse Murilo. – eu decido isso quando sair daqui.

- Bem, quanto a Lucas, ele está internado em um hospital para desintoxicação. Fernanda disse que um cara bateu nele para protegê-la, porque ela ia ser violentada, mas não confirmamos a história ainda. Vamos esperar que ela acorde, aí sim vamos cuidar de tudo.

- E quanto a nós? – perguntei.

- Vou precisar de depoimentos o mais rápido possível. Mas por enquanto, podem descansar. Só não saiam daqui sem avisar a polícia, ok?

Assenti com a cabeça, Murilo ia fazer um sinal de “sentido”, mas lembrou da mão dolorida e parou pela metade. Só gesticulou que sim.

O policial virou-se e caminhou até a porta. As enfermeiras saíram antes, e ele ficou por último.

- Ainda bem que conseguiram resolver isso... – disse. A caneta batendo no caderno.

- Como? – perguntei.

- Tudo se resolveu. Conseguimos fazer tudo voltar ao normal. Agora as coisas podem seguir seu rumo para a pessoa que merecia ser salva, não é ótimo?

Murilo riu. Olhei para o policial ali, parado.

- É sim, cara! É uma coisa ótima! É ótima! – disse Murilo, gargalhando.

- Pois é... – disse o policial.

- Só tem uma coisa melhor que isso. – disse.

O homem virou-se para mim.

- E o que é?

- O melhor de tudo é lembrar. Tem gente que não consegue lembrar nem do nome... – e comecei a rir junto com Murilo.

Ele sorriu.

- Não conseguem lembrar nem do nome. Pois é.

E saiu, fechando a porta.

Pertusier
Enviado por Pertusier em 11/06/2013
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