Um dia, todos nós vamos adoecer
"Nascer, crescer, envelhecer e morrer."
Não é bem assim, apesar que chega um determinado momento da vida que a gente finalmente percebe, a morte é inevitável. O que se pode fazer então?
Então, eu pensava: o pior não é morrer. É adoecer e ter sequelas, sequelas incapacitantes.
Ver esses pacientes, que perderam gradualmente ou subitamente sua individualidade, sua existência psíquica tem me feito repensar muitas coisas.
Outro dia, estava examinando um paciente acamado devido a múltiplas sequelas de AVE (acidente vascular encefálico), e ao examinar o seu coração, auscultando aquelas batidas fortes, ritmadas, e sem sopros, pensei que ele tinha um coração bom. Mas do que adianta o coração ser bom sozinho?
Agora, estudando demências, e revisitando um dos meus maiores medos, me lembrei de um episodio de quando estava ainda no colegial. Lembro de uma amiga querida que tive nesta época, que carregava um pensamento rebelde, um dom musical extraordinário, e uma sensibilidade tocante, que deixou em mim marcas para sempre. Foi uma amizade muito querida, e que infelizmente se perdeu na relatividade do tempo e do espaço das nossas escolhas. Logo que decidi fazer medicina, lembro muito daquele dia, saímos da escola e conversávamos sobre vários assuntos, desde religião até estilos de cabelos, e num determinado momento falamos sobre alguma pessoa que morreu de câncer. Lembro então que ela comentou seriamente: "Bom, é o que todos nós vamos ter um dia".
Ficamos mudas por um tempo, e eu fiquei processando essa frase até hoje. E agora me lembrei daquele dia, do céu que estava um azul bonito, a igreja que passávamos em frente, as pessoas que passavam pela gente, e todo o barulho dos carros.
Ironicamente, foi uma doença da mente que a pegou primeiro, ainda em sua juventude.
Aquela frase que ressoa em mim, me faz pensar, todos os dias quando estou cuidando desses pacientes. Não é só pelo câncer em si, mas pela inevitabilidade do fato que todos vamos adoecer um dia.
Eu tinha pavor de ter Alzheimer, ou qualquer doença neurológica que me fizesse esquecer tudo o que vivi, e das pessoas que eu amo, e quem eu sou. Que significância teria a minha vida, se isso acontecesse?
Então ameaçava severamente meus pacientes: "você tem que tomar o seu remédio da 'pressão', ou vai ter um 'derrame' e acabar na cama, dependente dos outros! Tem que se cuidar!" Em seus olhos eu via que partilhávamos do mesmo medo.
Fico muito preocupada imaginando que esta deve ser uma vida muito difícil. Estar acamado, sem condições de se mexer, comer, falar, se limpar, ou nem ao menos de saber de si. O coração bate, os olhos piscam, mas o brilho nos olhos não existem.
Tem os que a família se revesam numa sincronia bonita de cuidados, dedicação, trazendo conforto e carinho.
Tem os que estão abandonados.
E então me ocorreu que quando há esse amparo da família, todo mundo sente um conforto maior. O paciente é extremamente bem cuidado, a enfermagem se sente ajudada e tem admiração pelo doente e pela família. Até mesmo eu sinto um conforto maior, em ver aquela pessoa rodeada de cuidados. então eu vejo além, e consigo enxergar em conjunto, uma vida. E, principalmente ainda é possível enxergar através daquele corpo, pelas historias que os familiares contam, podemos ver o sentido daquela existência. As vezes, um diz: "Ele era muito conversador, e teimoso!" E nessa observação singela se revela toda uma vida, e desejos e existência. E aquela existência se preserva ainda naquele corpo, e neste mundo.
Os que são abandonados, eu sinto muito mais pena. Porque com certeza, eles tiveram uma existência, mas essa historia não é contada ali, e tudo o que vemos é um corpo com o coração funcionante.
E os olhos que piscam vazios...
Agora já não tenho mais esse medo. De repente compreendi que não devemos perder tempo tentando mudar, sofrendo pelo o que é inevitável. Não é só conformismo. É seguir resolvendo o que realmente é possível. E viver. No caminho perdemos pessoas queridas, mas podemos contar suas histórias e não deixá-las abandonadas na história da vida.
Agora o que tenho mais medo é de terminar sozinha, abandonada num hospital. E pra isso posso tentar uma solução.
Então o melhor a se fazer é cuidar do coração, da "pressão", da mente e dos familiares e amigos.
"Nascer, crescer, viver, amar, brigar,
perdoar, amadurecer, adoecer e/ou envelhecer
e morrer.
E ter alguém para contar essa história."