Marca-passo

Todos os dias pela manhã Pablo ia à academia para se exercitar. Enquanto caminhava na esteira, no mesmo horário de sempre, ele observava pela janela o jovem bancário que morava em frente sair, feliz da vida, para o trabalho. “Será que ele é tão feliz assim quanto parece?”, pensava Pablo, cada dia mais interessado na vida daquele moço de trinta e poucos anos que, de segunda a sexta, exatamente às dez e trinta da manhã, dava um beijo na esposa e saía caminhando em direção ao banco onde trabalhava.

Ao sair da esteira, naquele dia, Pablo notou que o rapaz barbudo que usava marca-passo já tinha chegado e conversava com a faxineira, próximo às bicicletas, certamente tentando convencê-la pela milésima vez a parar de fumar. Por causa de uma doença no coração, esse rapaz era aposentado pelo INSS, mas não via nenhum problema em passar as manhãs se exercitando nos aparelhos e praticando luta livre com os amigos. Ele era muito popular. Conhecia todos os frequentadores da academia e adorava se meter nas conversas dos outros, quase sempre com opiniões polêmicas, mas muito divertidas. Era um jovem diferente. Gostava de música clássica e de rock alternativo, lia Nietzsche, Foucault e Sartre, estudava o uso das ervas medicinais e sabia tudo sobre alimentação natural, pois era vegetariano de carteirinha. Na academia, só usava roupa surrada e chinelo de dedo. Parecia levar a vida numa boa.

Um dia, o rapaz apareceu na academia com a barba feita e o cabelo cortado bem curto. Foi até Pablo e lhe disse, sorrindo: “Hoje vou ao médico”. Pablo andava na esteira em trote acelerado (o jovem bancário tinha acabado de sair). Olhando para o rapaz, perguntou por perguntar: "Vai?". Ele respondeu que sim com a cabeça e continuou: "Você quer ver meus exames?”. Pablo não queria ver nada, mas mesmo assim diminuiu a velocidade da esteira e começou a ler as folhas que o outro lhe entregava, uma a uma. “Excelente”, disse ele ao devolver os papéis.

O rapaz tinha vinte e seis anos e parecia bastante saudável, a julgar pelos números que atestavam a qualidade do seu sangue e da sua urina. “Hoje o médico vai trocar a bateria do meu marca-passo”, disse ele, melancólico. E continuou, como se lamentasse, mas sorrindo – um sorriso doce e alegre: “É... Pelo jeito não vou passar dos trinta”. Pablo parou a esteira, olhou bem nos olhos do rapaz e disse: “Não fale bobagem”.

Naquela noite, Pablo ficou até tarde na internet investigando sintomas de doenças cardíacas que poderiam levar à necessidade de implantação de um marca-passo. Não sentia nenhum deles, mas precisava ter certeza de que às vésperas de completar quarenta anos não tinha nada de errado com o seu coração. A estratégia seria descrever para o médico alguns sintomas bem específicos, para ele ficar na dúvida e pedir um exame mais sofisticado – e os médicos quase sempre ficam na dúvida, pedindo exames e mais exames, só para descartar a hipótese de algo mais grave. Como sintoma principal, Pablo escolheu as palpitações. “Vai ser fácil”, pensou. 'Contrações prematuras seguidas de uma pausa prolongada'. “Tranquilo”. 'Sentem-se sob a forma de agitação irregular ou batimentos no peito, às vezes acompanhados de uma sensação breve, mas alarmante, de que o coração deixa de bater'. “É uma coisa esquisita, doutor”, começou a treinar, na frente do espelho. “Meu coração está batendo normalmente e de repente eu sinto como se ele engasgasse e parasse de bater”.

Desligou o computador e foi dormir. “Amanhã eu marco uma consulta”, disse para si mesmo, e apagou a luz.

Ao chegar à academia, no outro dia, Pablo recebeu a notícia de que o rapaz com marca-passo tinha falecido no consultório do cardiologista. O clima era de muita tristeza. “Dizem que o coração dele parou no momento em que o médico começava a trocar a bateria”, comentava uma amiga do rapaz que, com lágrimas nos olhos, esperava o pessoal que iria com ela ao velório. “Ele não tinha nem trinta anos”, disse um outro amigo, também consternado. “Tinha vinte e seis”, disse Pablo, em estado de choque, “...eu vi nos exames dele, ontem”. Ao dizer isso, foi para a calçada e presenciou, mais uma vez, a despedida do bancário de trinta e poucos anos. Fechou os olhos e recitou em voz alta o trecho de um poema de Adélia Prado: “é seu próprio gosto em ter uma família, amar a aprazível rotina”.

Respirou fundo, pôs a mão direita sobre o lado esquerdo do peito e sentiu, pela primeira vez na vida, uma palpitação.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 07/06/2013
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