O animal metafísico

                                                   "A vida, ou se vive ou se escreve."
                                                               Luigi Pirandello




 
            Os meus amigos e amigas, com certeza,  gostarão de saber o conteúdo do conto do Pirandello e  que serviu de título para a minha última crônica: “O marido da minha mulher”.
            Afinal, consegui achar o tal conto, de poucas páginas e deliciosamente engraçado.
            O Pirandello gostava de narrar  sobre as absurdidades da vida, com muita ironia e muito bom humor.  É por isso que o teatro adora encenar  peças dele.
            Como promessa é dívida (prometi na última crônica contar sobre “o marido da minha mulher”),  vou tentar reproduzir uma parte do conto. Claro, não textualmente, ça vas sans dire (é óbvio).
            Não era, ainda, um marido traído,  como imaginei no meu último texto. Parece que não era!  O personagem especulava sobre a possível traição e se desesperava só em pensar a mulher com o outro, logo após a sua morte que estava próxima.
            O personagem Lucas, muito doente, com  fraqueza generalizada, começa a pensar na morte. Morte essa que é um problema  recorrente para todos nós mortais. Impossível não pensar na morte. E o Lucas lembra-se de Schopenhauer, que  definia o homem como um animal metafísico. Quer dizer, é o único animal que sabe que vai morrer... Pois o nosso Lucas, vendo o apego da sua mulher com o jovem professor de piano,  resolve se vingar deixando um escrito bem claro sobre o que aconteceria com a esposa e o professor. Ele queria mostrar que previra a traição. Dizia com seus botões:  “ Estou certo, certíssimo de que – enquanto eu viver – ela  não me atraiçoará. Claro, se não me traiu até agora, ela vai ter paciência de esperar a minha morte, ainda que eu me arraste por mais um ano, suponhamos.”  Pensava ele também que seria capaz de botar a mão no fogo pelo professor e que este não lhe causaria nenhum aborrecimento, pelo menos enquanto o seu nariz estivesse fungando.
            E dava um exemplo do bom- mocismo do professor, que o levava de carro para respirar um ar puro no bosque. Ajudava-o a subir as escadas, parava em cada lance, contava até cem, tomava-lhe o pulso e costumava perguntar docemente: - “Continuemos?  - Continuemos.
            O Lucas chegava a sentir que sua mulher, digamos que se chamava Efigênia, ficava feliz em sofrer por ele. Assim, ela conquistava  diante da própria consciência o direito de gozar, mais tarde, sem qualquer remorso. Mas seu pensamento, que ia e vinha, acabava se convencendo que os dois (a mulher e o professor) eram uns refinadíssimos tratantes. E o nosso Lucas acabava desejando morrer depressa, só para não pensar mais no que aconteceria depois. No entanto, começava a ver em sua mente a sua mulher, com a cabeça loura reclinada com toda graça no amplo peito do Florestano  (era o nome do professor) e ainda por cima querendo fazer carinhos com os dedos nos pelos dos magníficos bigodes do amante. E fatalmente diria:  - “Tesouro meu... Ah, querido... sim, sim... Querido, querido...  Oh, voluptuosidade!. E o Lucas começava a rir. Os dois pombinhos perguntavam porque ele ria. E o nosso personagem, disfarçando, contava uma piada. Era o bastante para o professor atalhar e dizer: - “ Você pode ser velho, Lucas, mas sempre assim brincalhão!
            E meu filhinho Carlinhos, após a minha morte, pensava o Lucas, depressa se esquecerá do pai.
            - Papai...
            E o professor, de maus modos, responderá: - “Que quer você?”
            E o Lucas, se martirizando, pensava: - “ O marido de sua mãe, Carlinhos, que não é seu verdadeiro pai. Já pensou nisso?
            “Mas apesar de tudo, Carlinhos, a vida é bela... tão cheia...”