Incesto, sem prole

Tudo acontecera no trem, no último vagão. Havia uma negra, e havia um branco. Peles cansadas, monocromáticas. Ele encostado ao ferro, ela logo atrás, encostada nele. Ela é negra e promíscua, ele é branco e racista. Dividem quase que o mesmo espaço, contrariando a lei incontrariável de Newton. Ela debruçada nele. Ele debruçado no acaso. Apoiam-se um no outro, e se apoiam na barra de ferro do trem. As mãos, antagonizam-se na barra.

O trem está com todos os seus espaços físicos ocupados, por corpos inócuos, por mentes impensantes e entretidas, no cotidiano conspícuo das noites, uma após a outra. Há um limbo entre os dois. Um limbo de sensações inabaláveis. Um limbo de conceitos estabelecidos. De verdade particulares. De vontades. De lembranças. De um passado íntimo que não acontecera. E de um futuro palpável que nunca se fará real.

Mas o trem é real. Está real. E está lotado. Lotado de gente, de solidão, de gente solitária, e amontoada. O único espaço que lhes sobram é o espaço que dividem. Há repulsa, há desejo. O olhar dele, através do reflexo nas janelas fumê do vagão é vil. O dela, é de sobejo. Os olhares se encontram, por momentos efêmeros, e se rompem. Há desejo. Há desejo mútuo, e inconsciente.

A mão negra escorrega. A mão branca reluta, estagnada. Não demonstra. Não pode demonstrar. De que valeria? Não na sociedade da hipocrisia, de forma nenhuma poderia demonstrar. Mas demonstrar o quê? O racismo? Ou o desejo? O contato é inevitável! Não resta espaço sequer na barra de ferro onde se apoiam, onde também há inúmeras outras mãos, que, enfileiradas verticalmente, servem como plateia, e pano de fundo para aquela libertinagem platônica. Aliás, os olhares pelos precipícios das órbitas alheias também se tornam espectadores. Cruéis espectadores.

Os olhares. Do branco para negra, é abominável. Da negra para o branco, é vulgar. Do branco para as mãos, é insolúvel. De todos para as mãos, é de avidez, insaciável. De todos para a negra é de complacência. Da negra para ela mesma é de luxúria. O escopo agora são as mãos. Escopo dos olhares. Dele. Dela. De todos. O contato, de fato, é inevitável, e assim se faz, finalmente. O contato. O contato entre as epidermes. O contato entre as almas. Entre as penúrias. Os preconceitos e pré-conceitos sucedem-se, e enfim, sucumbem. Não há espaço, nem na barra, nem no julgo. Não há valores. Não há conceitos inabaláveis diante desta, que é força mais descomunal, mais visceral. A força da carne. A força do sexo. A força dos sexos. As entranhas do mais devastador sentimento escancara a essência do ser humano, do ser branco, do ser negro, do ser todo.

De súbito, tudo desmorona. Tudo. Tatos tornam-se ruínas. Tudo é nada. Nada é percebido. Nada fora percebido. Aliás, não houve apogeu. Não houve gozo. Não houve tempo. A próxima estação chegou, fazendo desabar tudo que fora construído, arbitrariamente, até aquele breve instante. Ele saiu. Ela ficou. Acomodou-se no breu que restara. Não houve julgamento. Não houve remorso. Não houve olhares. Não mais. Nunca mais, haverá.

Diego Baptista
Enviado por Diego Baptista em 04/06/2013
Código do texto: T4324843
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