O Goleiro
Papanduva, Santa Catarina, ano de 1984, outrora Escola Básica Alinor Vieira Corte, turma da 6ª série do período vespertino, antigo ginásio. Aula de educação física. O professor Bueno resolveu realizar um torneio de futebol de salão entre os alunos das turmas da 6ª série, na verdade era futebol de quadra.
Nos fundos da escola, por onde entravamos pulando o muro, ficavam de um lado o campo de areião, onde o futebol era com as bolas de borrachas, duras e pesadas, e para quem tinha coragem de ficar na frente de uma bolada, as marcas ficavam na pele por um bom tempo. Do outro lado a quadra de cimento bruto e áspero, boa para ralar pernas e braços da molecada, pois a vontade de dominar a bola era enorme, e os choques, encontrões e as rasteiras eram inevitáveis. A quadra não era coberta.
A participação era obrigatória e todos os alunos deveriam participar de algum time, e claro, valeria ponto na nota. Eu era um dos alunos da turma da tarde. Os times ficariam a critério dos próprios alunos. As panelinhas foram se formando. Os "fominhas" de bola já foram escolhendo os melhores jogadores para seus times.
E como em qualquer atividade esportiva os menos habilidosos ficavam sobrando, os famosos “pernas de pau". Eu estava naquele grupinho que sobrou, e como era obrigatório teria que se encaixar em algum time. Nunca fui um bom "boleiro" e as vezes sobrava até nas intermináveis partidas no campinho do "Gastão", onde o campo era dividido com as vacas e seus restos orgânicos (estrumes) que fermentavam ao tempo.
A contragosto dos "donos da bola" a turma dos "pernas de pau" foi incluída em algum time, claro que ficaríamos só no banco de reservas e assistiríamos as partidas de futebol por pura obrigação e para ganhar a nota e não ter que "pegar" recuperação em educação física.
Imagina contar para o pai que ficou em recuperação em educação física?
Na maioria das vezes a aula educação física se restringia ao futebol. Era só jogar a bola de futebol para ver a correria dos meninos, para as menina era "caçador" ou vôlei. Claro que o suor incomodava nas aulas seguintes, mas quem ligava?
O torneio iria começar na sexta feira após a aula, e continuaria no sábado de manhã. E nas semanas seguintes também.
Primeira partida, eu no banco de reserva com mais um colega. O árbitro era o professor. Começa a partida. Primeiro ataque do time adversário e um chute violento que foi espalmado espetacularmente pelo goleiro do nosso time, o Chicletão.
Ele se jogou com tudo e defendeu a bola que tinha endereço certo, a bola foi para o escanteio. Desespero do astro do time adversário, na época não tinha cabelo estilo moicano e nem usavas chuteiras de uma marca americana de cores vibrantes. No máximo os boleiros tinham chuteira, mas a maioria usava o famoso "kichute", totalmente preto e com garras de borracha, e alguns jogavam com as famosas "congas". E algum tempo depois, chegou e ficou um bom tempo nos pés da moçada o famoso "chineizinho", branco com a estrelinha azul na lateral e solado verde, e este já vinha fedido antes mesmo de usar.
Primeira e última defesa do goleiro. Chicletão machucou a mão no lance e estava fora da partida. Primeira substituição do time. No banco de reservas, eu e um colega. Depois de uma breve discussão entre os donos do time, chamaram meu colega para jogar no gol, ele recusou a proposta. Só restou uma única alternativa para o time: eu.
Nunca sonhei em ser um jogador de futebol, ainda mais goleiro. Mas as oportunidades aparecem donde menos se espera, pensei. Fiquei sentado no banco de reservas imaginando num futuro não tão distante, entrando num Maracanã lotado, poderia ser naquele em que entravam umas 200 mil pessoas, a galera ovacionando quando o alto falante pronunciasse meu nome.
Ou melhor, acho que meu nome não. Não ficaria bem, ele não é tão apelativo e não tem a sonoridade para um famoso narrador esportivo gritar: vai que é tuuuuuuuuuaaaaaa Eleutééééééééééériiiiiiooooooooooo. Meus pensamentos foram interrompidos pelos jogadores irritados chamando meu nome para entrar rápido na quadra.
Alguém perguntou:
- você já jogou no gol, né? Sabe as regras?
Não sei o que respondi, alguns jogadores do time balançavam a cabeça negativamente. Mas outros queriam correr atrás da bola, não importavam quem era o goleiro, pois eles resolveriam lá no ataque. O “dono” do time deus as instruções:
- você e você fiquem ajudando na defesa. E pegando a bola toquem pra mim, que eu resolvo!! e você goleiro, segura a bola e não deixa ela entrar!
Fácil assim, pensei. Se eu era desengonçado para jogar com os pés, imagina um polaquinho de pernas brancas jogando com as mãos. A quadra daquele ângulo era gigante, as traves maiores ainda e a bola era minúscula, e isso que naquela época eu não precisava usar óculos. Eu achava.
Chicletão havia espalmado a bola para o escanteio quando se machucou. Na cobrança do escanteio a bola foi cruzada na área. Não precisei nem pular direito, agarrei ela no ar. Sorrisos dos jogadores do nosso time, palavras entusiasmadas:
- é isso aí goleiro!
- vamo lá....!
- boa goleiro!
Agarrando uma bola no alto, puxa! já fiquei me achando... meus pensamentos voaram longe: goleiro de uma final da UEFA Champions League?(naquela época nem sabia que existia), ou uma final da copa do mundo pela seleção brasileira?... de novo meus pensamentos foram interrompidos pelos gritos dos jogadores:
- rápido goleiro, joga a bola pô!! tá dormindo!!
Fiz um "belo" lançamento para o ataque com as mãos. O lançamento foi estiloso e sem direção, a bola foi interceptada pelo time adversário no meio de campo. Nosso time correu para marcar. Mas o atacante era rápido e chutou a bola do meio do campo. O chute saiu mascado, meio sem rumo, a bola vinha “piriricando” e sem muita força. Não tinha ninguém na minha frente.
Fiquei imaginando uma defesa fácil e já calculando o arremesso da bola para o nosso atacante, que estava na banheira na área adversária. Iria ser gol na certa. O atacante iria matar a bola no peito e pegar um petardo fazendo a bola adentrar o angulo do goleiro adversário, ou talvez chutar e a bola entrar com goleiro e tudo. Nosso atacante estava inquieto e gesticulava freneticamente pedindo a bola que ainda se aproximava.
Já estava levantando para jogar a bola para nosso atacante e... opa!!
Opa? É opa!!!... a bola não estava na minha mão! cadê a bola?, pensei.
- Putz!!! olhei para os jogadores do time. Indignados. O atacante que antes balançava os braços freneticamente agora estava irritado. Enquanto ele chutava o chão, dava para perceber saindo da boca do atacante, aqueles famosos caracteres de desenho animado quando falam palavrão: bombas, raios, morcegos, cobras, lagartos, caveira...
Desespero do meu time e alegria dos adversários ... um frango... um frango não... um senhor “frangaço”... Desanimo total. Num chute despretensioso do Jair Adada, a minha quase fantástica carreira de goleiro foi por água abaixo. A bola passou entre minhas mãos e o pior: debaixo das minhas pernas brancas. A bola lentamente parou após a linha da trave. Gol do time adversário: 1 x 0, pra eles.
Só não fui substituído porque não tinha ninguém para assumir a posição.
A partida continuou.
O resultado final da partida vocês já sabem, perdemos. Mas eu ganhei: joelhos e cotovelos esfolados. Nem me despedi dos colegas direito, como de costume pulei o muro do colégio, raramente entrava pelo portão, andei uma quadra e já estava em casa.
Sábado de manhã a partida seria na quadra do lado da igreja matriz. Não apareci. Minha carreira de goleiro não decolou. Ninguém sentiu a falta do goleiro substituto. Não sei qual time foi campeão do torneio.
Minha nota de educação física foi na média e não fiquei de recuperação. Continuei fazendo as aulas de educação física, mas de torneios raramente participava.
Hoje na cidade grande quando jogo, continuo com as mesmas habilidades de ora piá, e para variar quando entro em campo é para a vaga de goleiro. Porque é a única vaga que sobra para entrar nas partidas e também porque não precisa rachar as despesas da quadra.