TIO OSCAR
A madrugada caminhava para os albores do dia que não tardaria mais...
A mãozona mal cuidada varreu o tampo da mesinha de canto, num atropelo incontrolado. Parecia um casco de animal; calejada; feitio de queijo maduro; despojada de um mínimo de sensibilidade. “Rastejava”, e deixava um traço de eiras subjacentes, onde passava. O tato difícil, buscava no escuro, o isqueiro de cobre amarelado, incansável acendedor da lamparina, e de cigarro também.
A mesinha, trabalhada em “cabiúna”, sustentava os petrechos necessários a um socorro noturno imediato. A lamparina, cuidadosamente abastecida, o isqueiro com pedra novinha atolada no fuzil e mais umas tantas de reserva, e a bilha de barro, pote de água fresca, bem ao alcance da boca seca, no ressonar da noite. A caneca de latão, era de dupla serventia; para o gole d`água e para tampo da boca do pote de barro.
Embaixo da cama, o urinol, o penico, bacio, bispote, branco esmaltado, exigente no reclame de atenção redobrada. Qualquer descuido e o azedume empesteava a casa toda. Era tarefa que ninguém desejava de cuidar!
O chapelão de palha, desfiado na borda, dormitava no prego da parede, enquanto tio Oscar também dormia. Enfiado na sua cabeça, parece que adquiria vida. Um cocuruto apontando pra cima, a marca indelével dos três dedos que o aconchegavam na cabeça, de forma a que só ele sabia fazer, e o empretecido de fumaça na parte inferior da aba, na parte frontal. Fumaça de cigarro!
O pigarreado forte, dava a certeza de que os filhos - prole numerosa – já se haviam colocado de pé e cuidavam das madeixas que a obrigação de cada um exigia.
O aroma do café recém passado, cheirava da cozinha e uma vassoura riscava o terreiro, num chap, chap insistente e característico. As aves madrugadeiras, saiam de seus poleiros, ao aviso esganiçado do garnizé com cara de efeminado, que cismava de riscar asa no terreiro, enquanto o galo velho puxava a tecitura de seu canto rouco, com sinal de cansado. Na grande pedra do quintal a ramagem da saborosa, soltava suas frutas cada vez mais rosadas. Frutinha vagabunda, ninguém lhe dava azo; passava às vezes despercebida. Melhor a ramagem, que servia de cerca viva. Mas até que era gostosa a danadinha, honrava bem o nome.
A calça-cáqui, dormia de preparo. Arregaçada até a altura dos joelhos, deixava à mostra, o lanhão de pé sem número que não tolerava calçado de couro. A botina chiadeira, acumulava mofos, metida dentro do armário Nunca colocara um sapato de classe naqueles pezões, só a botina! Vez por outra, metia-os dentro da chiadeira, de solado cravejado, pra ir à missa, ou pra uma viajem até a cidade. Era um martírio, mas era raro também.
Tio Oscar não fazia política; fazia telhas, potes e bilhas... tirava do barro, a forma do objeto útil; esculpia na argila o monumento da praticidade.
Dali da cozinha até o local de trabalho era um pulo. Descer a rampa do quintal e cair no tanque de barro.
Despejou na caneca de latão o café de rapadura, puxou da fumaça uma tira de toucinho curtido e jogou no braseiro. Enquanto sorvia o café, assistia o chiado da brasa vermelha, e o pipocar da pele ressequida que vinha se metamorfoseando, até se transformar numa suculenta iguaria; pururuca; torresmo, assado de tropeiro, que se dane com o nome!
Mordeu o naco de carne e a gordura escorreu-lhe pelos cantos da boca... a cada mastigada, o estalido do lábio, belo repasto de desjejum.
Recostado na parede betumada de barro branco, o “pezão” apoiado na sapata do fogão de lenha, sacou do bolso o toco de fumo, esfregou na chapa a lâmina do canivete e começou a preparar o cigarro que lhe acompanharia dia todo. Sacou da palha, lambeu-a de um lado e do outro, deu-lhe uma esticada com as costas da lâmina e enrolou cuidadosamente o fumo. Alçou da boca do fogo o “tição” fumegante, aproximou-o dos lábios e acendeu o “pitoco”.
Todo esse espectro de procedimento, transcorreu sem uma palavra. Os comandos eram feitos a partir de olhares e eram entendidos a distância. Minutos mais, estariam todos, pisando e repisando o barro, realizando a tarefa de separar “barro magro” do “barro gordo”, apenas no olho e no tato, sem se importarem de saber da ciência que os separava por denominação. Mas sabiam distinguir o primeiro, frágil, do último que tinha mais elasticidade. Nada disso lhes importava; importava a mística, de transformar o barro em formas objetivas e valiosas.
Tio Oscar não era artista artesão; era oleiro; atividade que demandava dedicação prática. É preciso ter sensibilidade e teimosia; para ser oleiro; ser oleiro, é saber ler o ponto da argila, a hora do beliscar, de fazer o corte e da moldura; no momento certo; amassar e bater, no “ponto de couro” que tem a consistência de sabão; no “ponto de osso”, o barro quebra. Trabalhar no desempeno, ir para a secagem e levar ao forno; processar a “queima do biscoito”, sem perder a qualidade. Para o acabamento, manejar com maestria a borbotina, ir colando as alças e depois de pronto aplicar o engobe. Beleza de figura! Brotada do chão, da terra estéril, da lama... esmerilhada, refinada, pelas mãozonas de Tio Oscar.
Das qualificadoras do oleiro, Tio Oscar encarnava a teimosia, o sistemático...
Era com sua família, os oleiros; únicos de uma vasta região promissora.
Os pés descalços, eram uma “oleirice”. A presença da lamparina, na mesinha de cabeceira do quarto de dormir, era uma “oleirice”. Não se explica que naquela altura dos anos, luz elétrica se espalhando por todos os lados, movendo motores, máquinas, aquecendo equipamentos domésticos e ali, na casa do final de rua, ainda, na candeia, no querosene, na binga de isqueiro!
Não recebera com bons olhos a recente instalação da usina hidrelétrica! A maravilha da modernidade! Aquilo não passava de mais um gesto de politicagem, um engana bobo.
Mas Tio Oscar não fazia política. Fazia tijolos, fazia telhas, fazia potes, mas sabia muito bem fazer pirraça!!! De birra tomada, resolveu que aquela luz não entraria em sua casa enquanto vivesse, ou, enquanto existisse lamparinas.
Esqueceram-no, por um tempo, até que passou a ser visto como referência. Todos tinham luz elétrica em casa, menos Tio Oscar.
A vendinha no final da rua era seu ponto de parada obrigatória. Tinha cantinho reservado, donde via a movimentação dos passantes. O serviço de luz não ia bem. As águas secavam e a demanda aumentava. O rádio era uma gralha agonizante! Poucos estavam satisfeitos e Tio Oscar ria. Ria calado, que não era também de dar vezo a que dele tirassem zombaria. Ganhava com força, com sua lamparina.
- E então Tio Oscar, que dia vamos ligar a luz? – perguntaram-lhe num desses dias.
- Luz? Que luz? – responde com um ar de riso matreiro.
- Então o senhor se mantém firme, intransigente...
- Não. Né que´u sô isso que ocê falou de gigente não, que´u não sei que que´isso. O problema é que vem tempo que´u saio de noite, pra vê essa tal luz, e eu não consigo vê essa luz... e eu cá tenho comigo um sistema, de nunca colocá dentro da minha casa, coisa que eu não conheço, e sem vê inhantes.
Nunca mais lhe perguntaram sobre o assunto... Tio Oscar, tinha ponto de osso!
Um dia a luz foi substituída!!!