MADONA DA MINHA VIDA

Madona da minha vida é uma inspiração sobre a mulher que trago em mim desde minha existência. Trata-se da minha mãe, uma senhora austera até minha juventude, companheira na minha maturidade, mas hoje, em nossas idades já bem avançadas, é uma senhora frágil que solicita muito da minha atenção e do meu carinho. Somos uma mistura de figuras e papeis trocados, sou para ela uma cuidadora, uma mãe, uma amiga, menos a filha de quem ela cuidou no passado. Sem contar que às vezes sou uma estranha completa na existência dela.

As coisas acontecem paulatinamente, sabemos disto, mas parece que foi de repente. Num processo de ontem foi assim e hoje não é mais assim. Quase sempre me pergunto o que a faz sair de si no agora e ir para o passado de filha. Muitas e muitas vezes quer ir para casa do pai, acho eu que é a casa onde se sentiu protegida e tenha vivido dias alegres longe das frustrações do agora. Racionalmente o agora trás a falta do marido, companheiro de longos anos: quase 60 anos de um bom casamento.

É fato que com a morte do meu pai as coisas se alteraram muito, porque primeiramente, segunda ela mesma, meu pai não morreu, está viajando, ou foi embora com outra mulher. E aí eu numa tentativa inviável e impulsiva tento recolocar a realidade ali naqueles delírios dizendo que se a morte for uma mulher ele de fato foi embora com outra. Nestes momentos a saída dela é tão simples e objetiva, corta o assunto dizendo que não quer mais falar disto e vai embora cuidar de procurar alguma coisa entre seus pertences nas gavetas. Mais uma vez penso ela vai procurar esse algo nas gavetas da sua mente, da sua alma.

A madona da minha vida hoje é uma mulher amargurada, com raros momentos de alegria. As emoções são levadas ao jogo das ambivalências, passa da alegria a tristeza, da docilidade à agressividade, da racionalidade aos delírios como num passe de mágica. Conviver com essas nuanças afetivas - emocionais, neste carrossel de desejos e realidades nem sempre é fácil, nem racionalmente aceitável, nossa tendência é resgatar ela para o presente da razão e não deixa-la ali no presente da irracionalidade.

Por falar em irracionalidade, penso saber, na mais completa consciência da minha profissão que tudo isto pode ser parte do jogo das defesas psíquicas para a pessoa lidar com o sofrimento infringido pela idade, pela degeneração neuro-psico-motora. Digo por vezes que as pessoas neste estagio degenerativo estão fora da consciência sobre os rumos que o avançar da idade nos leva. Estão sob o controle das células degenerativas do cérebro. Parecem que elas não toleram ao longo da vida as frustrações e as limitações impostas pelo tempo – espaço da natureza. Estão aqui sob o controle da égide psíquica. Observo nalguns casos perto de mim que passaram por perdas significativas na infância, juventude ou mesmo na idade adulta e da experiência nunca se recuperaram totalmente e o preço é alto: perdas da memória por uma degeneração neurológica e com acentuado prejuízo do psiquismo. Podemos falar em traumas, já que o trauma está relacionado a alguma vivencia da pessoa numa situação que a coloca indefesa e potencialmente abalada em todo estado emocional. Precisamente falando a pessoa fica encurralada física e emocionalmente.

Nesta linha de pensamento incluo a madona da minha vida. Em tenra idade perdeu a mãe, não tem lembranças, vive apenas com que lhe contaram, mas chora o agora como se fosse aquela criança que sofre por nunca ter conhecido a mãe. Nos delírios repete a falta e a perda da mãe como algo a ser expurgado do passado. Uma lembrança do passado sem qualquer elaboração psíquica que lhe ajude a resgatar tal perda irrecuperável e incluo nestas perdas a do meu pai. Mas acho que no fundo da sua alma ela sabe disto, e viver como filha pode ser um jeito novo de reinventar os cuidados que possamos ter com ela.

Olhar hoje para minha mãe é lamentar a perda daquela senhora austera e companheira em outros tempos, mas agradecer a Deus a oportunidade de deixar-me cuidar dela e aprender com ela como viver esses cuidados sem perder a razão, o equilíbrio diante dos momentos mais difíceis que o dia a dia nos impõe. A natureza humana tem por principio procurar a felicidade além de si e não percebe que ela, a felicidade, pode estar bem perto como na possibilidade de cuidar dos seus entes queridos no mais complexo desenrolar das suas idades e agradecer também por conseguir cercar-se de pessoas tão boas como aquelas que nos ajudam nestes cuidados do dia a dia. No meu caso são duas: uma na parte da manhã e outra no período da tarde. A elas toda gratidão.

Graça Costa

Amparo, maio de 2013.