Cotidiano

Inerte, do outro lado do rio, parado na calçada em meio aos carros e prédios intercalados e insignificantes. De epiderme escura, vestindo trapos, com um saco velho nas mãos e uma velha perversidade mundana na face. Os olhos estagnados nas órbitas, parecendo vislumbrar seus anseios, encarava com certa avidez o imenso e inexpressivo nada. Mas o barulho arguto de suas vísceras o fazia retornar a realidade, permanecer na cruel realidade.

A julgar, parecia apenas, mais um morador de rua, à procura de uma brecha no tempo que o fizesse viajar de volta para algum instante do seu pretérito, onde se perdera. Enquanto isso, vivia a realidade, sobrevivia a atual realidade. As sandálias remendadas abrigavam seus pés sujos e cansados. Ele observava as pessoas que iam e vinham, despejando sobre seu ego já dilacerado generosas doses de suas vaidades arrogantes, se é que lhe restava alguma fatia de seu ego. A rua asfáltica e fria representava um palco. Cercado por holofotes, onde os protagonistas desfilavam suas máquinas possantes, suas roupas, seus ascos. Eram como protótipos da luxúria, enraizada na decência da classe média abastada de vazio. Sua presença era incolor. Era como marca d’agua numa folha rústica da vida. Mas não havia prisão, grades. Não havia como defender os burgueses pungentes que ali jaziam dessa alma sedenta.

Virei a esquina, invadi seu espaço. Percebeu-me, atravessou a rua, abordou-me, com desespero e fome. Suplicou socorro. Olhos abatidos, mãos trêmulas. Suplicou dinheiro. Com medo da minha resposta, da minha ação, do meu julgamento, suplicou piedade. Afoguei minha mão no bolso direito da calça, de onde emergiu uma nota de real, uma nota de esperança. Questionei o verdadeiro fim que aquela mísera nota rumaria. Jurou-me: para saciar minha fome, apenas! Cri que fosse verdade. Tomou-me a nota com minúcia, agradeceu-me com embaraço, e enfim, abandonou-me com desdenho. Percebeu passos, logo atrás. Duas almas potencialmente generosas? Não havia como saber se obteria o mesmo sucesso, a não ser que as abordasse também. Ainda faltava certa quantia para comer com dignidade. Despiu-se do receio e caminhou no sentido contrário ao meu, em direção às duas mulheres que vinham logo atrás. Esperançoso, foi rude demais. Passos truculentos, inocentemente esquecera que ainda havia preconceito no mundo, nas pessoas. Imediatamente as moças, bem vestidas e de narizes em pé, frearam seus passos. Assustaram-se. Atravessaram a rua, deixando um rastro julgo e opressão. No ímpeto, ele as seguiu. Deveria desculpar-se pelo inconveniente talvez, e tentar assim, barganhar a quantia que lhe faltava. A densidade se agravou. O limbo que separava suas intenções das conclusões das moças aumentou gritantemente. Elas deram um passo atrás, ameaçaram gritar, não lhe dando oportunidade sequer para explicar a situação. Logo, as atenções de todos que aqui ali também caminham e serviam, até o momento, apenas como adereços naquele desencontro teatral, se voltaram para o embaraço. Parecia o que não era. Nem de longe era o que parecia. Outras pessoas, burgueses como elas, ameaçaram intervir, em complacência a presunção errônea das moças. O preconceito imperou, a esperança dilui-se, esvaiu-se, ruiu. O desentendimento se desfez com meros meneios de cabeça. Ele, desculpou-se de longe, com gestos de omissão. Elas se debruçaram na presença dos outros, aliviaram-se.

Meu cigarro chegou ao fim. O preconceito e a fome, não.

Diego Baptista
Enviado por Diego Baptista em 31/05/2013
Código do texto: T4318308
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