As cartas de Nilma

Já faleceu a personagem principal desta crônica. Morava pertinho. Era uma mulher solteira, mas tinha dois filhos. O pai dessas crianças era um dentista do mais alto conceito na cidade. Dois irmãos, todos dois dentistas. Todos os dias ele subia e, mais tarde, descia a rua, depois da visita à família. Branco, rosto vermelho, cabelos loiros e olhos azuis. Filho de família ilustre que, parece, não concordara com o casamento dele com aquela bela mulher de corpo bem torneado ao gosto do modelo aprovado naquelas décadas de 50 em diante. Essa senhora vivia na condição de amante única daquele dentista, único homem de sua vida dedicada ao amado, aos dois filhos e ao lar e afazeres domésticos.

Quem visse a senhora juraria ser uma pessoa do mais fino trato (e era!) e juraria que tivesse formação intelectual (isto não tinha...). Era uma interiorana e analfabeta e, ao que consta, foi este o motivo que mais pesou na avaliação que fez dela a família do nobre dentista.

Inventemos um nome para esta personagem: Nilma. Nilma tinha dois filhos, um menino muito bonito e a cara do pai; e uma menina. O menino teve um fim trágico quando estava pelos doze anos de idade. Não vou dizer como foi o fim desse menino porque o mundo é pequeno e, de repente, algum conhecido pode ligar os pontos e...

Nilma era amiga da nossa família e logo ficou sabendo dos meus pendores para a escrita. Ela chorava porque o sonho dela era ler e escrever. Formou a filha em uma carreira universitária das mais disputadas.

Queria escrever cartas para os parentes do interior e pegou no meu pé. Eu estava pelos treze anos e isto para ela era motivo de muita emoção. Achava fascinante ver as letras formando uma filinha no papel. Quanto mais observava, mais se enamorava e não parava de tecer elogios e encher os olhos de lágrimas.

Escreva aí, Taininha, depois a gente passa a limpo num papel bem bonito. Nilma apreciava o belo, vestia-se bem, usava jóias, sapatos altos, mas não se maquiava, usava um batonzinho rosa e pronto.

Escreva assim: Aracaju, tanto de tanto de mil novecentos e tanto. Tá, Nilma, com isto não se preocupe.

Comece, então, e diga: Minha família, saudações. A bênção, meu pai. A sua bênção, minha mãe.

Anotou? Sim, anotei. Leia para eu ver se ficou bom. E eu pensava com os meus pequenos botões: Mas, como se ficou bom se ela mesma ditou? Eu lia, ela aprovava. Às vezes tornava a pedir que lesse, achava bonito e se martirizava naquele endeusamento da palavra. Tornava a elogiar e acrescentava que me daria um lindo presente, pois gente inteligente merece ser recompensada.

Coloque agora: Mãe, pai, sinto muitas saudades de vocês, da minha avó, dos tios, dos sobrinhos, da minha madrinha, de Zeca de Totonha, do cachorro, do papagaio, da roça, de tudo.

Espere, preciso concluir, não dite agora. Sim, concordava ela. Então, em momentos como este que acabo de narrar e em outros ainda mais cheios de recomendações e explicações, eu interferia no texto, sintetizando, simplificando. Em lugar de a todo parágrafo começar com Mãe ou Pai, eu entrava direto no assunto e também reformulava o que a solicitante missivista oral dizia. Santo Deus, e agora? Ela sempre pedia para eu repetir. E agora? Eu já havia me esquecido das mudanças feitas no texto da carta. Ela notava e repetia a mesma frase como gostaria que fosse escrita. Imediatamente pensei nas providências cabíveis para o caso. Passei a memorizar o que ela ditava. Ela insistia mais, repita, repita. E se faltasse um artigo, uma preposição, ela notava. Ah, vejo agora que se Nilma tivesse estudado, ela seria um perigo, no melhor dos sentidos. Ou seria uma professora carrasca, ou seria uma escritora detalhista. Mesmo assim, ganhei muitas vezes na questão. Ou ela se rendia, não sei.

Depois de inúmeras cartas que, geralmente, eram muito parecidas na sintaxe e na temática, com pedidos de bênçãos, notícias de Aracaju, da família e recomendações, os pais foram se ausentando. Os irmãos também vieram para a capital e Nilma não precisava mais de enviar cartas e cartões de boas festas. Como eu já sabia o texto na ponta da caneta, até me fazia falta escrever aquelas cartas nas quais já me sentia pedindo bênçãos e sendo abençoada.