Ela - Parte II
Em frente à prateleira de bebidas, eu ainda decidia se levaria mais uma garrafa de saquê quando o avistei. Estava lá parado, no começo do corredor, olhando para mim. Era a primeira vez que o via depois da separação.
Ele vestia uma camiseta branca, bermuda e chinelos. O cabelo cuidadosamente despenteado, a barba por fazer, marcas do seu visual despojado. Parecia realmente surpreso em ter me visto. Fiquei pensando se era surpresa ou dúvida, talvez não tivesse me reconhecido totalmente. Decidi então acenar discretamente. Demorou um pouco, porém ele acenou de volta, esboçando um leve sorriso.
Caminho em sua direção, empurrando meu carrinho. Aquele encontro parecia um pouco desconcertante para ambos. Completavam-se seis meses que tínhamos rompido. Aquela tarde chuvosa, melancólica, em que busquei algo a mais nele, respostas que não vieram, uma apatia incomum. Decidi então pela separação. Não estávamos mais em sintonia, não éramos mais aquele casal radiante.
-Oi.
-Oi.
Ao chegar perto noto hesitação em seu olhar. Antecipo-me e beijo-lhe o rosto, cumprimentando-o. Decido quebrar o gelo.
- Coincidência te ver por aqui. Como você está?
- Eu estou bem, tô tranquilo. Geladeira vazia, não tenho mais meus 18 anos para viver só de miojo – ele responde, movimentando a cabeça em direção ao carrinho.
Sorrio descontraidamente. Ele e seu bom humor característico. Tantas a tantas vezes sorri com suas tiradas, gargalhei com suas piadas, me empolguei com suas histórias bem contadas.
- E você, como está tudo? – ele logo pergunta, deixando transparecer uma ansiosa curiosidade pela minha resposta.
- Ah, tudo bem, muita correria, mas se não for assim a vida não anda, né?
Minha resposta é bem genérica, talvez até vaga. Tinha vontade de contar tudo o que aconteceu após aquela porta se fechar, seis meses atrás, quando ele foi buscar suas coisas em meu apartamento. Mas o corredor de bebidas em um supermercado não era o local ideal para aquele assunto.
- Isso é verdade – ele responde hesitante, com o olhar perdido. – Camiseta bonita hein!
Sorrio envergonhada. Eu vestia uma camiseta de nossa banda preferida, Foo Fighters. Camiseta que fora um presente dele. Presente de aniversário, juntamente com a discografia completa da banda. Um dia fantástico, terminado ao som de “Times like these”, com nós dois deitados nas areias da deserta praia do Félix, em Ubatuba.
- Eu gosto dela. – Desvio então o foco da minha camiseta para a banda. – Viu que terá show deles aqui em Sampa no ano que vem? Já estou economizando pra ir.
- Sério? Ouvi dizer que a nova turnê deles está sensacional. Vi um show deles esses dias no Multishow, um festival ou algo assim, onde tocaram só as mais antigas.
- Ah, eu vi esse show também! Pena que foi curto. Mas não tem como reclamar, só de ter começado com “Big Me”, ainda fizeram um cover…
Enquanto eu falava sobre o show reparei no brilho diferente de seus olhos. Algo como se tivessem acendido enquanto conversávamos. Então vieram à tona lembranças de nosso tempo juntos, onde aquele brilho sempre se fazia presente. Momentos únicos, que se perderam quando tudo teve seu abrupto final. Confesso que levei minha vida adiante, fiz acontecer e corri atrás do que tinha vontade, porém sozinha. Sentia a falta dele, como meu grande companheiro, maior amigo e parceiro, mas a vida tem dessas coisas, que não entendemos, e só o tempo cura e ensina.
- …e imagina só, tem o boato que eles podem até gravar o DVD deles no show aqui. Já pensou que fantástico? – finalizei, ainda perdida em minhas reflexões.
- Agora então que não perco mesmo esse show! – ele respondeu. E antes que qualquer silêncio pudesse nos constranger, emenda apontando para meu carrinho de compras. - Bem servido esse estoque hein!
Ele destacava a quantidade de bebidas escolhidas.
- Ah, isso aqui é pra uma festinha hoje lá em casa. Uma festinha só da mulherada, as meninas do Mackenzie e as do escritório. Se você fosse mulher eu até te convidava…
Ele sorri.
- Bom, eu já chorei assistindo “Sempre ao seu lado”, mas acho que isso ainda não me qualifica como mulher.
Mais uma vez seu bom humor. Como era ótimo poder sorrir de suas piadas de novo.
E o inevitável silêncio surgiu. Durante um bom tempo sempre pensei como seria encontrá-lo novamente. Como reagiria, o que falaria, perguntaria. Criei dezenas de situações, imaginei estar preparada para o momento. Mas na prática era diferente. Ali tinham sentimentos, emoções, uma história. E num rompante, sem pensar muito, soltei.
- Senti saudades, Alex.
- Eu também, Jaque – de pronto ele respondeu, quase sem voz – Você está linda. Fiquei feliz em vê-la.
Sorrindo, pensei como a vida trilha nossos caminhos. Destino, coincidências, objetivos, atitudes. E num instante tudo se embaralha por conta do coração. No fim das contas é ele quem comanda tudo. Eu, certa de ter tomado a melhor decisão seis meses atrás, me vejo com vontade de novamente tentar. Não voltar atrás. O que fiz, naquele momento, era o certo a se fazer. Mas e se ele tivesse mudado? Se amadureceu e e está pronto para caminhar lado a lado comigo? Se aquilo não foi um ponto final, mas apenas uma vírgula? Será que só o tempo saberia me responder?
Ele me tira de todas essas reflexões.
- Deixa eu ir, pois ainda tenho que passar no açougue, ou então terei de alternar entre ovo frito e congelados o mês inteiro. E não quero te atrasar mais ainda pra sua festa.
- Hehehehe, que isso, você não me atrasou. Ainda estou bem adiantada – e tentando manter a naturalidade, respondo – Ah, também fiquei feliz em vê-lo.
- Te cuida, Jaque.
- Você também, Alex.
E seguimos em direções opostas, empurrando nossos carrinhos. Bom, segue a vida. Segue o jogo. Sinto-me diferente. Uma confusão de sensações. Expectativas retornaram. O que seria de um próximo reencontro? E se não houvesse um novamente? E esse monte de perguntas em minha cabeça? Eu era um ponto de interrogação ambulante. Então escuto sua voz novamente, e minhas pernas ligeiramente tremem.
- Jaque.
Dou meia volta, o carrinho ainda apontado na direção oposta, e vejo que ele está de frente, o rosto me encarando.
- Oi Alex.
- Será que posso te ligar um dia desses?
Viro novamente na direção contrária, ficando de costas para ele. Sem que ele possa ver, sorrio. Era exatamente aquilo o que eu esperava. A minha resposta. Então, com um pouco de charme, olhando por sobre o ombro, dou-lhe uma piscada.
- E por que não poderia?