Ele - Parte I
Eu estava distraído, tentando lembrar se ainda tinha maionese na despensa, quando a vi. Lá estava ela, parada em frente à prateleira de bebidas. Foi um daqueles momentos que realmente você não tem ideia do que fazer. Era a primeira vez que a via depois da separação.
Ela vestia um shorts jeans e uma camiseta da sua (na realidade nossa) banda preferida, Foo Fighters. Camiseta que fora um presente meu. Presente de aniversário, juntamente com a discografia completa da banda. Um dia fantástico, terminado ao som de “Times like these”, com nós dois deitados nas areias da deserta praia do Félix, em Ubatuba.
Foi em meio a essas lembranças que percebi ela acenando e sorrindo pra mim. Um sorriso lindo e um aceno tímido, mas natural e espontâneo. E eu ali, parado, congelado pela falta de atitude, tal qual um menino que se perde da mãe nos corredores de um supermercado. Depois de intermináveis dez segundos respondi seu aceno, com um chacoalhar de mãos facilitado pela tremedeira em que me encontrava.
Ela então veio em minha direção, empurrando seu carrinho já quase cheio de compras. Aquele seu andar único se fez presente, contendo ao mesmo tempo sensualidade e atitude. A mesma atitude que, seis meses atrás, decidiu colocar um ponto final em nossa relação.
- Oi.
- Oi.
Será que a cumprimento com um beijo no rosto? Um abraço? Ou nenhuma intimidade? Droga, não sei o que fazer para não parecer um completo idiota. Ela se antecipa em minha direção. Um beijo no rosto então. Uma mistura de constrangimento e afeição.
- Coincidência te ver por aqui. Como você está? – ela pergunta.
- Eu estou bem, tô tranquilo. Geladeira vazia, não tenho mais meus 18 anos para viver só de miojo – respondo movimentando a cabeça em direção ao carrinho.
Eu e minhas infames tiradas improvisadas, quase sempre péssimas. Ela ri descontraída, mostrando que não estou tão enferrujado assim. Decido retribuir a pergunta, tentando dar um ar natural a minha curiosidade.
- E você, como está tudo?
Sim, eu estava realmente curioso para saber como andava sua vida depois daquela tarde chuvosa em que busquei o restante de minhas coisas em seu apartamento.
- Ah, tudo bem, muita correria, mas se não for assim a vida não anda, né?
Vida corrida. O estilo dela continuava o mesmo. Sempre ativa, ficar em casa, para ela, era um exercício de quase morte. Seja na parte profissional, na pessoal ou na espiritual, vivia em busca de algo a mais. Sempre admirei isso nela. Mas essa ambição me sufocou, não consegui acompanhar seu ritmo, nossa sintonia era cada vez mais desigual. Ela então decidiu por nós, ponto final. Eu, sem explicação concreta, não lutei contra, aceitei, fim.
- Isso é verdade – respondi, ainda hesitante, procurando as palavras para continuar a conversa. Olho para o chão, preciso pensar rápido. Tenho muito para dizer, pouco consigo falar. Rendo-me ao lugar comum. – Camiseta bonita hein!
Ela sorri, respondendo um pouco desconcertada.
- Eu gosto dela. Viu que terá show deles aqui em Sampa no ano que vem? Já estou economizando pra ir.
- Sério? Ouvi dizer que a nova turnê deles está sensacional. Vi um show deles esses dias no Multishow, um festival ou algo assim, onde tocaram só as mais antigas.
- Ah, eu vi esse show também! Pena que foi curto. Mas não tem como reclamar, só de ter começado com “Big Me”, ainda fizeram um cover…
Enquanto ela falava sobre o show, reparei que ela estava diferente. Não pelo leve bronzeado em sua pele. Não apenas pelos cabelos mais curtos. Nem mesmo só pelas unhas pintadas de violeta, ou sei lá que cor era aquela. Logicamente tudo isso chamou minha atenção. Mas a diferença estava em seu semblante. Uma aura de mulher forte, decidida, até mesmo com um toque de superioridade.
E então cai na real. Clichê total, mas real. Percebi o quanto estava sentindo falta dela, da minha amiga, companheira, parceira, amante, conselheira. Da minha metade. Com ela ao meu lado eu era mais forte, capaz, determinado. Na minha ignorância achei que ela estava tentando me mudar, me moldar, mas que nada, ela estava me fazendo viver. Droga, seis meses pra chegar a uma conclusão tão óbvia! Eu era mesmo um imbecil.
- …e imagina só, tem o boato que eles podem até gravar o DVD deles no show aqui. Já pensou que fantástico? – terminou ela empolgada.
- Agora então que não perco mesmo esse show! – respondi.
De relance reparei em suas compras. Fora os itens cotidianos, chamou minha atenção a grande quantidade de bebidas no carrinho. Algumas garrafas de refrigerante, caixas de sucos, muitas cervejas, até mesmo um saquê.
- Bem servido esse estoque hein! – falei apontando para as bebidas.
- Ah, isso aqui é pra uma festinha hoje lá em casa – ela respondeu, logo completando – Uma festinha só da mulherada, as meninas do Mackenzie e as do escritório. Se você fosse mulher eu até te convidava…
- Bom, eu já chorei assistindo “Sempre ao seu lado”, mas acho que isso ainda não me qualifica como mulher.
Ela mais uma vez riu do meu comentário. E então ficamos em silêncio. Ela, num rompante, soltou:
- Senti saudades, Alex.
- Eu também, Jaque – respondi quase sem voz – Você está linda. Fiquei feliz em vê-la.
Ela sorriu. Eu tinha aprendido a lição. Do jeito mais duro que a vida pode ensinar. Com a perda. É, eu sou um poço de clichês, mas de que outra maneira poderia tornar isso mais claro. Então lembro novamente daquele pôr-do-sol na praia do Félix, e a letra de “Times like these” ecoa em minha cabeça: “It´s times like these you learn to live again”. Bom, hora de seguir em frente. Saio do transe em que me encontrava, e minha realidade volta a ser o corredor do supermercado.
- Deixa eu ir, pois ainda tenho que passar no açougue, ou então terei de alternar entre ovo frito e congelados o mês inteiro. E não quero te atrasar mais ainda pra sua festa.
- Hehehehe, que isso, você não me atrasou. Ainda estou bem adiantada – tentando manter a naturalidade, ela emendou – Ah, também fiquei feliz em vê-lo.
- Te cuida, Jaque.
- Você também, Alex.
E seguimos em direções opostas, empurrando nossos carrinhos. Eu ainda atordoado, surpreso, enfeitiçado pela situação. Pela conclusão. Mas, espere um pouco? Não posso ser omisso agora. Não pela segunda vez com ela. Não após saber como me sinto. Não tenho nada a perder. Ou melhor, tudo o que tinha já perdi uma vez. Dou meia volta e arrisco.
- Jaque.
Ela também dá meia volta, o carrinho ainda apontado na direção oposta, seu corpo de lado, o rosto me encarando.
- Oi Alex.
- Será que posso te ligar um dia desses?
Ela vira-se novamente na direção contrária, de costas para mim. Um daqueles momentos de cinema, em que tudo ao redor se congela, o mundo girando apenas pela sua resposta. Então, com um pouco de charme, olhando-me por sobre o ombro, ela dá uma piscada.
- E por que não poderia?
(Continua…)