VISITANDO-ME (conversa íntima)
- Já pedi mil vêzes para não vir aqui sem me avisar, mas parece que você não me ouve.
- Como assim já pediu mil vezes para eu não vir, se é você mesmo que me chama?
- Ah, tá bom, não vou discutir novamente com você, já percebi que não adianta muito.
- Como você está? Não parece muito bem!
- Olha, vou te falar uma coisa e creio que já lhe disse em outras ocasiões em que, inoportunamente, me visitou. Realmente não estou muito bem e se estou assim, creia, a culpa sempre foi e sempre será sua. Você sabe que detesto ficar falando sobre isso, mas já que você insiste, vamos lá, quem sabe eu ponho um ponto final nisso, de uma vez por todas.
- Como assim, um ponto final?...Realmente, você não parece bem.
- Bom, não vou discutir isso com você, porque você tem mesmo esta mania de sempre achar que está certo e não adianta discutir. Aliás, se sou assim hoje, devo isso a você. Você desde cedo sempre quis ser perfeito, o que é impossível para qualquer um, mas você achava que poderia ser. Você jamais quis demonstrar os medos que sentia. Jamais se dobrou a pedir ajuda, fosse o que fosse, e acabei por me tornar isso que sou hoje. Sim, isso mesmo, a melancolia que carrego hoje, devo exclusivamente a você. Tornei-me um homem, por vezes, duro demais.
- Mas apesar de você me dizer tudo isso, duvido que consiga me esquecer completamente.
- Como poderia me esquecer de você, com tudo que ficou marcado profundamente em mim? Como poderia me esquecer de você, com as coisas que fez no passado?. Sim, você se lembra daquela teimosia que tinha em começar a trabalhar, quando ainda era uma criança? Lembra, quando arrumou seu primeiro emprego, como sofreu?.
- Mas você hoje conta isso para tudo mundo com um ar de heroísmo, de satisfação.
- Heroísmo sim, porque você tinha que acordar as 4:30hs da manhã e para uma criança de 13 anos acordar nesse horário, “façameofavor”! E aliás, não sei se quando conto essa sua “façanha”, faça algum bem para alguém. Acho que acabo por constranger as pessoas com isso. Sabe por que constrange? Porque os mais jovens que ouvem essa estória, se acham na obrigação de fazer o mesmo e isso não é saudável. Não é saudável porque criança tem é que brincar. Tem que ter lazer, ler, estudar, e não ser um operário em uma fábrica, como você foi.
- Garanto que na época, apesar de tudo, foi muito bom, e você hoje sabe disso.
- Lá vem você com estas coisas de “eu sei disso ou daquilo, que foi bom ou ruim”. Não gosto quando você começa a me fazer lembrar do passado. Aliás o passado já passou, apesar de ser uma horrível redundância. E olha, vou ser bem franco, o tempo de chorar, de derramar lágrimas já passou também.
- Azar o seu, porque, quando era comigo, eu chorava com vontade e me fazia, de certa forma, muito bem!
- Bem, não vou discutir isso com você, esse tempo já passou! Mas vamos voltar ao que conversávamos. Hoje sou assim porque, você era um misto de timidez, de ousadia, de inquietude, de medos e temores, apesar de sempre ter sido desafiador.
- Tá vendo, viu como não fui tão ruim assim?
- Olha, disso eu não posso reclamar. Adorava quando você revirava aquela estante da sala em busca de um livro bom para ler e quando encontrava parecia que entrava na estória. Lembra aquele, O Meu Pé de Laranja Lima, do José Mauro de Vasconcelos?...Nossa como você chorava ao lê-lo, rssss, parecia que era o próprio Zezé, rsss. Isso sim, me faz bem hoje e devo isso a você. Lembra daquele outro, Os irmãos Corsos, de Alexandre Dumas?...Foi muito bom.
- Pois é, tá vendo, te ajudei muito.
- Lembra do Doidão, também do José Mauro de Vasconcelos?...Nossa você se sentia atravessando aquele mar, nadando sem parar...podia sentir a água no seu corpo.
-Pois é....
- Mas espere! É sempre a mesma coisa. Toda a vez que você aparece, você acaba me enrolando com essas coisas. Volto a dizer, não foram só flores não, tiveram muitos espinhos também, e é melhor você não esquecer isso. Os espinhos deixaram estas cicatrizes que carrego ainda comigo. Cicatrizes que ainda doem e me fazem ter esta mágoa que tenho de você. Mágoas que refletem no meu dia a dia. Você poderia ter sido bem melhor, era só querer.
- Mas você há de convir comigo que não dispunha de muitas coisas para ser diferente, afinal era o que tínhamos na época. Tinha que trabalhar se quisesse alguma coisa a mais. Tinha que ganhar algum dinheiro para satisfazer minhas vontades.
- Mas por que diabos você não pedia, ao invés de ir trabalhar. Por que você não pedia para que suprissem as suas necessidades de criança? Com essa tua atitude idiota de achar que não precisava de ajuda, ou sei lá, que tinha vergonha de pedir, e ir trabalhar tão cedo, me tornou o que sou hoje. As vezes tenho vontade de pedir ajuda. As vezes tenho vontade de gritar para todo mundo que preciso de ajuda, mas por sua culpa não o faço, por vergonha, por medo, sei lá, e você foi o grande culpado. Se tivesse agido de outra forma, talvez, hoje, fosse tudo diferente.
- Bem, achei que estava fazendo o certo!
- Viu só, lá vem você com esse jeito de novo. Tudo pra você tá certo. Tudo tem que ser assim. Não é capaz de refletir, de enxergar que estava errado. Não é capaz de ser humilde e aceitar que errou. Mas também, de nada adiantaria. Em nada poderia mudar, porque já passou. O tempo já foi e estamos na reta final.
- Nossa, hoje você está terrível.....
- Olha, quer saber....acho que já falamos demais por hoje. Eu estou ocupado, você já me tomou tempo demais, e aliás, você me ensinou a ser assim, você me fez ser assim, portanto, pode dar um jeito de ir embora......vamos, chega......por hoje chega!