O NENÊ BELGA

Em 1970 eu fui trabalhar em uma companhia de mineração no Estado de Rondônia. Já fazia uns dois meses que eu lá estava e ocupava um apartamento do mesmo nível dos principais executivos da empresa, que me fora prometido antes de viajar e quando lá cheguei nada do que foi prometido foi cumprido. Então decidi voltar pelo não cumprimento do trato, porém como fui para realizar um trabalho de grande importância, apareceu um apartamento como que saído da cartola de um mágico.

Estavam para chegar à mineração alguns técnicos europeus, além de alguns executivos. Pediram-me para desocupar o apartamento para um casal belga por uns três dias. Recusei-me, perguntando:

- Por que eu? Pensem bem, se vocês quiserem Contabilização, Balanço Fiscal e Declaração de Rendas, não descumprem o que acordamos.

Estava com todos os trunfos e qualquer desavença eu dizia:

- Embarco no próximo avião e não volto.

E foi o que fiz. Não abri mão dos meus privilégios. O casal que dormisse numa barraca ou outros que cedessem um apartamento. Afinal, quem aceita trabalhar numa mineração em plena selva, deveria saber dos desafios que vai enfrentar.

O avião chegou com toda a equipe, mas o que ninguém esperava é que o casal tinha um bebê de apenas um mês de vida. Quando vi aquele casal, na faixa dos vinte anos, tão branco, e uma criança tão linda de olhos azuis que mais pareciam dois diamantes, arrependi-me de minha intransigência. Meu coração que queria ser duro, voltou a ser mole. Quando fui apresentado a eles, disse-lhes:

- Vocês podem ficar no meu apartamento, só que vou deixar meus pertences e venho pegar minha roupa todo dia, enquanto vocês o ocuparem.

Recebi da Aline um abraço efusivo, seguido de “merci beaucoup (muito obrigado). Foi o agradecimento mais alegre e emocionante que me lembro de ter recebido em minha vida, até então. Senti-me aliviado pela criança que se chamava Pierre. Todas as noites, eu conversava com eles, mesmo porque entrava no apartamento para apanhar minhas roupas. Cheguei a tomar o Pierre nos braços, digo que me “engracei” com a criança. Dormi três noites na “caserna” (assim era chamado o dormitório, não individualizado, dos solteiros de menor nível técnico).

No dia seguinte comentei com o Engenheiro Garcia que aprovou o meu gesto. Como seria o sofrimento para aquela família que vinha de um inverno europeu, para o calor de uma selva tropical, cuja temperatura oscilava entre 35ºC e 40ºC. Será que eles tinham consciência disso?

Comecei a pensar no sofrimento do Pierre, nas suas assaduras, na falta de remédios para aliviá-las, na falta de fraldas descartáveis. Aline era geóloga e teria de trabalhar, quem cuidaria dele?

Os apartamentos para o pessoal de maior nível técnico, era uma gaiola cúbica de tela com alvenaria até a altura do peito para preservar a privacidade. O pé direito era alto. O telhado, protegido de palha de coqueiro, ficava um metro acima do lado superior para fluir melhor a ventilação, cuja temperatura à noite ficava em torno dos 30ºC, se chovesse à tarde, caso contrário, seria maior. Um caso raro era não chover, mas acontecia vez ou outra e aconteceu de não chover dois dias e a temperatura foi a 48ºC, segundo os relatórios da mina.

Será que Pierre aguentaria ou morreria de diarréia e desidratação? O cheiro do fumacê (apelido para o inseticida que era pulverizado para afastar os mosquitos, desde moscas até o mais temido, o Anófele (transmissor da malária), não lhe traria problemas para as vias aéreas desde as narinas até os pulmões? Para mim Pierre estava condenado ao sofrimento e talvez à morte sem ter cometido mal algum, apenas por estar tão cedo em um lugar tão adverso à sua natureza.

A família belga dormiu três noites em meu apartamento, o dia da chegada e mais os dois seguintes. No quarto dia, pela manhã, tomou um avião fretado rumo à mineração que ficava cerca de 250 quilômetros (por rodovia) a sudeste de Rondônia. O piloto já tinha feito inúmeros voos para a Companhia. Conhecia bem a rota.

À tarde soubemos pelo sistema de comunicação da empresa que o avião não tinha chegado e nenhum contato tinha sido efetuado. Não tinha chovido durante o horário previsto da viagem. As autoridades do aeroporto foram comunicadas. Não só houve buscas oficiais como também outros pilotos foram contratados para localizar o pequeno avião. A selva naquela região era bem fechada com árvores de mais de trinta e cinco metros, nenhum indício foi observado. As buscas cessaram depois de alguns dias, tempo máximo calculado para sobreviver naquelas condições. Ainda um mês após não tivéramos notícias. Nunca soubemos o que de fato aconteceu. Se os quatro ocupantes do avião não morreram na queda, certamente morreram de febre ou devorados pelas feras. Quantos acidentes aéreos desse tipo teriam acontecido na ocasião e ficaram desconhecidos.

Infelizmente, o acidente em 2006 com o Boeing da Gol me trouxe Pierre à lembrança. Todos nós acompanhamos pela televisão a dificuldade que foi encontrar os destroços do Boeing com toda a tecnologia que temos hoje, imaginem voar a olho nu tendo apenas como referência um morro, a curva de um rio, uma pequena vila, uma aldeia ou um centro de mineração com uma precária pista de pouso.

Quanto mais o tempo passa, mais acredito que temos dia e hora marcados para o futuro inevitável.

Quão seria meu remorso até hoje se não tivesse sido gentil com a aquela família belga?

Sei que não vamos consertar o mundo, mas se cada um fizer sua parte, teremos um mundo melhor para viver. Que o céu tenha Pierre, que teve uma tão efêmera passagem por este mundo!!!

Quando eu era criança e acontecia de morrer um bebê, diziam que viraria um anjinho e uma nova estrela brilharia no céu. Quem sabe se em alguma galáxia do universo, há uma estrela e um anjo chamados Pierre?

SANTO BRONZATO 29/5/2.013.

SANTO BRONZATO
Enviado por SANTO BRONZATO em 29/05/2013
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