Estreia desastrosa - II
Adiantando a narrativa de um fato real, volto à Clínica dos acidentados, mais precisamente à frente do espelho onde vi algo. E julguei que aquele algo me atrapalhava, não me deixava ver o meu rosto. Afastei-me para a direita, para a esquerda, para a direita, para a esquerda. Interessante, algo me acompanhava nos movimentos. Não era uma boa hora para brincadeira. Tentei tocar o espelho e não é que o algo vinha também com a mão na minha direção? Santo Deus de toda a misericórdia, eu era algo. Sim. Os cabelos emaranhados, cheios de areia, ciscos, algumas folhinhas. O olho esquerdo fechado, por mais que tentasse abrir não conseguia. Meu Deus será que este olho verá novamente? Como estará por dentro. Vi o vestido todo manchado de sangue, vermelho sobre o vermelho. Olhei com o olho direito para baixo e vi a barriga agora maiorzinha. Subia e descia como se fosse um elevador. Realmente eu não conseguia organizar os pensamentos na cabeça. O marido e a parentela sendo atendidos. Um enfermeiro me esperando com o soro nas mãos para lavar os cabelos, doido pra me dar banho que enfermeiros gostam de judiar. Insistia: vamos tomar banho. O frio aumentando, eu tremia como jamais tremi na vida. Sentada em uma cadeira de metal, mais fria que o frio que eu sentia, o enfermeiro segurou minha cabeça e tentou lavar para desmanchar aquele monte de sujeira misturada com sangue. O médico esperando para ver o estado da cabeça. Saiu costurando, pontos e ciscos, tudo misturado. Mandou o enfermeiro passar atadura. Dei um jeito, mesmo tonta, de voltar ao banheiro para ver como ficou aquele serviço de salão de beleza ao contrário. Como sou teimosa! Foi tudo bem pior. Fiquei parecendo o Homem Lata, o Freddy Kruegger. Ai, que seria de mim, logo vi o fim do amor, do casamento, de tudo. Que tipo de homem iria querer aquilo? Mas não chorei. Minha mente sempre busca soluções, talvez eu tenha algum parente japonês. Tonturas, fraquezas, vertigens e vômito, tudo que jamais havia sentido. O pensamento mais rápido que o som. Fazia um enorme esforço para ficar acordada, mas logo tudo sumia. Não sei exatamente de tudo que aconteceu naquela madrugada. Mais ou menos sei, por relatos posteriores, que andamos por diversos hospitais e maternidades. Os do hospital diziam: ela está bem. Os da maternidade experimentavam e diziam: não está na hora, levem-na para casa e quando a bolsa romper, voltem. Em casa me colocaram em uma cama. Tudo rodava. Via tudo multiplicado, sentia uma sensação que imagino nem os bêbedos sentem. Ai, Jesus, sei que vou morrer, comecei a rezar. A lógica falava toda cheia de pose em minha mente: claro que você vai morrer. Uma mulher grávida passar por um acidente assim e ficar nesta condição, claro que vai morrer! Aquilo me deixou mais que louca, eu não queria morrer de forma alguma. Chega, estou toda molhada, o que será isto: É a bolsa, a bolsa rompeu, vamos. Reuni forças nem sei de onde, tudo continuava rodando. Quando vomitava eu sentia que a lógica ia ganhar na questão. Que triste fim! Nem o Policarpo! Acredite você que me lê, a maternidade tentou me devolver para casa. Juntei mais forças e disse: daqui não saio, daqui ninguém me tira. E, vendo que eu ia cair, uma funcionária providenciou o local para sentar e logo fui para aquelas salas, eu e Deus, pois parir é isto, estar com Deus. Eu que tinha mais medo de parir do que de morrer, ali estava, no primeiro parto, acidentada. A enfermeira estacionou a maca perto de uma sala, eu sentia a claridade do teto, mas não percebia bem as coisas ao redor. O que sei é que ouvia, mais de quatro da manhã, a voz de Cid Moreira! O dia amanhecendo e Cid falando de trás para adiante: NACIONAL JORNAL. NACIONAL JORNAL, NACIONAL JORNAL. A minha lógica até tentou funcionar e me perguntei como aquele Cid estaria falando àquela hora. A outra lógica abandonou o caso, fugiu. Amanheceu o dia, vi a janela, a claridade, tudo tão lindo, um crucifixo na parede branca. Pronto, ela ganhou na questão, eu morri, aqui é o céu. Escutei a voz de Luiz Gonzaga cantando a Asa Branca. Gostei da recepção no céu. Morrer não era tão ruim assim. Que alegria senti ao ver que o céu era o de Aracaju, que eu estava na maternidade, que uma enfermeira estava ao meu lado e convidava: Vamos parir? Como vamos se a grávida era eu? E tocou a me encher de injeções nos dois braços. Fiquei animada, na certa as injeções seriam para diminuir as dores do parto. Ainda era uma colicazinha meio manhosa. O pior viria e eu na maior inocência.
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