Estreia desastrosa - I
Dia 16 de julho e eu não sabia que era dedicado a Nossa Senhora do Carmo. A minha barriga enorme, todos diziam que ali dentro estavam duas crianças. No ano de 1978 não se andava assim facilmente fiscalizando por dentro da barriga. Os exames existiam sim, mas gente cheia de nós pelas costas como eu, preferia a surpresa, a novidade. Preferia a explosão de alegria: “É UMA MENINAAAAAAA”. Particularmente, eu gostaria de dizer: “É UM MENINOOOOOO”. E foi nisto de querer um menino que eu engravidava todo ano. Até que o penúltimo foi UM MENINOOOOOOOOOOOOOOOOOO. Agora está um homem moreno, alto, bonito e pesando 92 quilos. Poxa, que pesado, mas é bem definido. Tenho que inserir algo aqui e depois volto à questão principal deste texto. Uma criatura cheia de nós pelas costas era uma expressão que meu pai gostava de usar quando a pessoa se tornava complicada, cheia de nove horas. Ah, e nove horas? Deixa pra lá, dá no mesmo. Quanto ao que aconteceu no dia de Nossa Senhora do Carmo, deu-se o seguinte: chegaram visitas provenientes do Rio de Janeiro, um tantão de gente, todos parentes do marido que me fez aquela barriga monumental. Vamos passear, vamos à praia, vamos dançar, vamos comer e beber, era o que todos queriam, eu inclusive. Passando pela casa da minha mãe, ao ver aquela fuzarca, logo disse: aonde você vai, menina? Deixe de ser rueira, por que não fica quieta em sua casa? Ah, mãe, eu vou passear na praia, logo estaremos de volta. Que poderia mais mandar a mãe de uma mulher casada e prestes a dar à luz? Todos para a noite aracajuana que, apesar de ser julho, mês de chuvas, aquela foi uma noite de gosto primaveril. Todo mundo bebeu, comeu e dançou. A volta me deu um certo temor. Não dirija, Jorge. Deixa que Luiz leve o carro. Obedeceu, não tinha outra opção. O carro um fusca novinho, mas nem tudo ia bem. Luiz era novato no volante eu não sabia. O carro com mais passageiros do que o permitido. Sabe como é parente, não perde oportunidade de se aglomerar. As leis de trânsito um tanto frouxas na década de 70, ainda mais em Aracaju, uma cidade de gente teimosa e cheia de vontade. As tias e primas entre si na maior alegria, falavam sem parar. Luiz, com os olhos fixos na pista, seguia sem que de coisa alguma se desconfiasse. Ele dirigindo, Jorge no meio, quase em cima da marcha. E eu, eu, eu, metida em um lindo vestido vermelho, sentada ao lado. De repente notei que o carro se aproximava bastante, perigosamente, do fundo de outro. Então eu disse: vai bater! Incontinenti me segurei em um suporte que fica acima do porta-luvas. Pensei: eu me seguro aqui, com bastante força e para onde esse carro for eu vou junto. Isto que conto parece algo demorado, mas foi tudo num relance, só que estou colocando em slow motion. Isto foi a poucos metros da Ponte conhecida como Ponte dos Cajueiros. Então eu me senti pluma. Fiquei leve como um astronauta lá pra cima. Por mais que eu segurasse com bastante força, me sentia como se estivesse flutuando. E via o carro quase em cima da ponte. As luzes da ponte aumentaram de tamanho. A mente funcionando. Pensei: e agora? Não sei nadar, Santo Deus, vou morrer afogada. Apaguei. Não caí da ponte. Depois de muito tempo foi que fiquei sabendo o que acontecera. Fui lançada para fora do carro e estive deitada em um canteiro cheio de pedras, arbustos e outras coisas. Os frequentadores de uma casa noturna ao ar livre, do outro lado gritavam: olhaaaaaaaaaaa, uma mulher de vestido vermelho foi jogada para fora do carro! Soube que o local ficou lotado de gente, de carros. Soube tantas coisas bem depois. Que foi uma ex-colega de ginásio que me prestou socorro imediato. Chamaram a polícia, ambulância. Os outros, os parentes, estavam dentro do carro emborcado, inclusive os meus sogros e o marido, preso à porta. Foi o último a ser retirado daquele carro. Todos ficaram levemente feridos, apenas. Meu sogro que era muito vaidoso, quis voltar ao local do acidente para procurar uma caneta e um pente. Cabelo que é bom, ele quase não tinha. Todos na clínica dos acidentados. Acordei um pouco dentro da ambulância, mas estava com sono. Abria e tornava a fechar os olhos. Numa das vezes vi Jorge ao meu lado, a camisa lavada de sangue. Fiz um esforço enorme para prestar atenção se a sirene da ambulância estava acionada. Isto porque só me vinha à lembrança de quando eu era menina e perguntava à minha mãe porque a ambulância tocava aquela sirene triste e longa. Porque a pessoa que vai dentro está nas últimas. Eu não sei se estava ou não, mas ouvi a sirene em desespero. Apaguei outra vez. Quando acordei, era o momento de descer da ambulância, Jorge me ajudando, preferi andar, mas via tudo rodopiando. Procurei a barrigona com os olhos e vi que agora era uma barriguinha. Que teria sido? Será que a criança está em algum lugar? Será que nasceu sem que eu visse? Marinheira de primeira viagem e morrendo de medo de parir, inaugurei dessa forma. Passei a mão no lado esquerdo da cabeça e senti algo mole, molhado. Jorge acode e diz: Tem nada não, é só um pouquinho, depois você usa um chapeu. Quase caio, acordei de vez, um espelho, precisava de um espelho, quero um espelho. Vieram os médicos, os enfermeiros. Dê banho nela, de cabeça e tudo. De repente me senti tremendo de frio, não conseguiram me forçar a tomar banho, lavaram meus cabelos com soro fisiológico. E eu pensando no espelho. Quando consegui, fui ao banheiro. Eu só não gritei porque gritar não adiantaria e eu não gosto de coisas que não adiantam.
*** Volto para contar mais, deixo vocês aí, preocupados, mesmo sabendo que estou vivinha da Silva.