A Raça
- Então é como vos digo! Ainda não há nada melhor para as castanhas, do que esta água-pé.
Desta forma prestava eu as honras ao dono da casa, o meu querido amigo Gonçalo e à sua juliana, uma água-pé de três estalos.
Gonçalo de seu nome, tinha sido meu patrão nos tempos em que eu com dez anos, na sua oficina comecei a aprender a profissão de serralheiro civil e por lá andei cerca de quatro anos. Por volta dos quinze anos, vim para Lisboa e o meu contacto com o Gonçalo só é restabelecido já eu tinha trinta anos e pico. Começa então uma amizade entre nós, a ponto de cada vez que ia a S. Miguel, ficava em sua casa, para desespero da minha mãe.
- Vai Tónio! Mais uma malguita?.. Lá por Lisboa, não te passa disto pelos queixos!?
- É o passas, Sr. Gonçalo, é o passas. E digo-lhe mais, com uma pinga destas qualquer santo é S. Martinho.
Os três já bem bebidos e a saborear as castanhas assadas na forja. O Sr. Gonçalo, eu, o seu genro Manel, que tinha a incumbência de encher as malgas pelo espicho do pipo, sempre que estavam vazias, numa alegre paródia entre nós, de, vai acima e deita abaixo.
- O Salito por onde é que anda que ainda não o vi? – Pergunto.
- Foi ao treino a Nandufe.- Responde o Manuel.
Naquele momento, reparo que os olhos do Sr. Gonçalo adquiriram um novo brilho, após eu ter perguntado pelo filho. O caso não era para menos, depois de três filhas, ter-lhe nascido um rapaz, foi a maior alegria que aquele homem simples teve, pois na sua opinião, a perpetuação da raça era transmitida através dos genes do homem, sendo a mulher pouco mais do que uma incubadora.
- Não me importava nada que o meu filho fizesse um filho a uma gaja qualquer.
- Oh! Oh… É tolo! - Diz o Manuel a rir, ainda com a boca atulhada de castanhas, numa entoação própria da região em que a palavra tolo, soava mais a ternura que admoestação.
- A sério? – Pergunto com ar falsamente escandalizado.
- Pois claro que é a sério. – Exclamou, o meu ex-patrão.
Surpreendido com esta saída do Sr. Gonçalo, fiquei, primeiro sorridente à espera que ele rematasse com uma graça, como forma de encaixar semelhante disparate, depois pela expressão séria como o disse e demoradamente manteve, concluí ser efeito da água-pé que, muito embora de baixo grau, pela sua quantidade, já lhe toldava o miolo.
Olhei para o Manuel tentando decifrar pela sua expressão, até onde ia a veracidade do sogro, porém, o tradicional ar gozão, em nada me esclareceu.
- Mas que rica pinga a sua que o põe a dizer o que não sente. – Arrisquei, duma forma airosa, levar o dito para a brincadeira.
- O que disse! É o que sinto. Podes crer que o desejo mesmo. – Responde-me com ar sério o meu amigo.
Perante tal afirmação vacilei, mas ainda a duvidar, inquiri: – Mas o que é o leva a dizer semelhante coisa?
- A raça dos Almeidas.
- Homessa!.. Não o percebo! O que é que tem a raça dos Almeidas, com o facto de querer que o seu filho, tivesse um filho com uma mulher qualquer?
- Será que emburraste lá por Lisboa?
- É lá!.. O que é lá isso? – Observei com falsa mágoa, o que levou o Manel a soltar uma gargalhada, espalhando partículas de castanha mal mastigadas com o riso inesperado.
- É como te digo! Em miúdo até eras esperto e se bem me lembro gostavas muito de história.
- Nisso tem razão. Gostava e ainda gosto.
- Então se ainda gostas, deves saber que o herdeiro do trono era sempre o filho varão, como forma de manter pura a linhagem. Mesmo nos nobres, o herdeiro era o filho mais velho. Filho e não filha!.. Estás a ouvir?
Fiz que sim com a cabeça, enquanto dava a volta a umas castanhas, para assarem do outro lado.
- Para além de tudo isso, havia o cuidado de na nobreza o único herdeiro ser o primeiro filho varão, muito embora, com a responsabilidade de proporcionar o sustento aos outros irmãos.
- Quer dizer!.. Se um nobre tivesse dez filhos, nove eram lambões. – Interrompeu o Manel, com malícia.
- Não interrompas o meu raciocínio. – Pediu o sogro.
- Está bem! – Resmungou o Manuel, fingindo amuar.
- Então na sua óptica, acima de tudo havia que preservar o nome.
- Nem mais, ou será que estou a falar pró boneco? Mas não só o nome, como também a pureza do sangue que no caso das filhas se misturava com o do marido, dissolvendo-se os genes numa mistura onde predominava o masculino e com isso a pureza da raça se perdia nas múltiplas gerações.
- Ah! Hoje és tu que levas com a defesa da linhagem. – Comenta risonho o Manuel.
- Está calado! Tu não sabes o que dizes, és de Fail e basta.
- O que é que tem, ser de Fail?
- É uma terra de tolos.
- Mas olhe que foi este tolo que casou com a sua filha.
- Porque também é uma tola.
Tive que meter a mão a tapar a boca, para não me acontecer o mesmo que ao Manel, com o ataque de riso que me deu perante este diálogo.
- Olhe que o Tónio também nasceu em Fail!..
- Mas veio de pequenino para são Miguel, senão era outro tolo.
Nesta altura vieram-me à memória, os grandes debates sobre o tema da predominância do macho na perpetuação da espécie, que acaloradamente mantinha aos serões na alfaiataria, com pessoas consideradas cultas na época. Em miúdo, encostado a um canto para não me fazer notado, assistia com enorme prazer a esta troca de opiniões, se bem que, na altura não entendia a maioria do que diziam.
- E digo-te mais… Por exemplo: A mulher do rei é a rainha. Rainha porque casou com o rei. Porém, se por falta de filho varão ela for coroada rainha, o marido não é o rei. Recebe uma espécie de título de rei consorte.
- À pois, consorte! Eu queria vê-lo a si, a ter que obedecer toda a vida à minha sogra, sem poder levantar garimpa. Estou mesmo a vê-lo, a andar sempre atrás feito cãozinho, continuamente a repetir, sim senhora, minha rainha, como ordenais. Para ver se dizia com sorte. Ná! Não era o filho do meu pai. Antes sem sorte do que consorte. - Comenta o Manel com o seu eterno ar galhofeiro fazendo uma vénia.
- Ó Tónio, o que é eu faço com este gajo que se diz meu genro?
- Para já, dê-lhe duas castanhas para ver se se cala, pois já me dói a barriga de tanto rir.
- Bem!..O melhor é a gente não lhe ligar. Então como sabes a 4ª Dinastia, é a dinastia Bragantina.
- Bom! Não sei aonde quer chegar, mas segundo a sua convicção, com duas rainhas, essa dinastia não é pura.
- Ora ainda bem que o compreendes, pois é por não ser pura que eu quero dar-te o exemplo da superioridade dos genes masculinos. Mas antes que tudo: A primeira rainha, a D. Maria I, a linhagem da sua raça continua pura, porque ela casa com o seu tio paterno, filho de D. João V, irmão do seu pai, D. José.
- Mas que grande pouca vergonha, tio com sobrinha. Depois admiram-se dos filhos saírem esquisitos. – Interrompe o Manel, com ar dúbio entre o sério e o brincalhão.
- Ó senhor meu genro!
- Dizei senhor meu sogro.
- Cala-te!..
Perante este diálogo entre os dois, foi-me difícil aguentar mais o riso e os olhos vermelhos e chorosos fizeram com que eu tivesse que sair para me recompor. A água-pé também ajudava à festa.
Continua na "A Raça" parte 2