O SOVACO DO MORCEGO
Numa dessas noites quentes de verão resolvi sair de casa e sentar-me, um pouco, no meu banco preferido, num arremedo de praça que fica bem próximo ao prédio em que moro.
Comodamente instalado, com o auxílio prestimoso de uma almofada de paina, dei uma espiada no movimento, avaliei o quanto de gente nova havia no “Açaí do Japonês” e fiquei dando tratos à bola...
De dentro e das imediações do quiosque emanava o alarido dos locais em que se junta gente jovem. Garotas, em trejeitos exagerados, gargalhavam sem bem saber o motivo. Rapazes ensaiando gestos de ataque e defesa, alguns casais trocando beijos linguarudos e, até mesmo, um em que os dois pareciam querer ocupar o mesmo lugar no espaço...
"Uma semvergonhice", diria D.Mafalda, uma viúva de boa idade que morava nas proximidades e que costumava levar seu cachorro para o passeio noturno de alívio intestinal...
Tudo parecia transcorrer nessa normalidade meio anormal, quando uma baforada de vento fez invadir nas minhas narinas um cheiro forte de maconha. Agucei a vista e percebi, num dos cantos bem à esquerda do quiosque, um grupinho de cinco ou seis passando o que deveria ser um “baseado”, de mão em mão e de boca em boca. Certamente, pela fisionomia alegre e surreal dos circunstantes deveria ser um "cigarro da paz". Sorriam, olhando para lugar nenhum no céu de Sobradinho.
Alguns, à medida que iam deixando o grupo, abriam espaço para que outros se achegassem e fossem participar daquele importante momento aeróbico.
Estava, assim, absorto, observando o desempenho daquela amostra da fauna humana, quando percebi alguém que estava sentando ao meu lado, no mesmo banco, liberando, logo, um solene “Boa Noite”!
Respondi o cumprimento e logo percebi que meu vizinho não era nada mais, nada menos, do que o “Exu Caveira”! Sim senhor, o Exu Caveira em carne e osso! Respeitosamente, o "Seu Caveira"!
É lógico que não estou me referindo àquela personagem que pontifica, nos “terreiros”, espalhando terror e assustando o pessoal chegado. O Seu Caveira a que me refiro era o apelido que a malícia popular dera ao “Zé Gariroba”, o coveiro mais requisitado do cemitério local.
À boca pequena corria o boato de que ninguém era mais rápido na abertura de uma cova, por mais duro e seco que fosse o terreno. O homem tinha uma agilidade terrível no manuseio da picareta, da pá e da enxada que todos diziam que ao iniciar seu trabalho nunca deixava de tomar um gole da cachaça preferida da entidade. Mal o gole descia e lá vinha o “home” tomar conta do seu “cavalo”.
A fama estava tão sedimentada que o Chefe da Administração da Cidade, certo dia, andou confabulando com outros expressivos iguais, a respeito de uma ideia que teve a partir da fama do Seu Caveira. Estava inclinado a criar um concurso ou festival de coveiros.
Sim! Era isso mesmo! Tinha esperança de trazer para a cidadeesse galardão, pois estava mais do que certo de que as cidades adjacentes não teriam, em seus quadros, nenhum coveiro que se igualasse, no desempenho, ao coveiro do cemitério local.
Ao que parece, a coisa não caminhou, face o protesto de gente afinizada com o "Seu Caveira" verdadeiro, aliás, de batismo, "João Caveira", entidade de ponta nos domínios necropolitanos.
Tendo em vista a gritaria, o Administrador que já andava pensando em engavetar a ideia, foi mais desestimulado quando um gaiato, que trabalhava na Prefeitura, andou espalhando que a cidade iria deixar de ser "cidade-dormitório" para ser "cidade-cemitério".
Um assessor, puxa-saco, ajudou a botar água na fervura. Buzinou no ouvido do homem que isso poderia ser um verdadeiro "Calcanhar de Aquiles" nas suas pretensões futuras de candidatar-se ao cargo de Governador.
Mas, voltando ao papo, no banco da praça, conversa vai, conversa vem, e o Zé começa a desembuchar uma incrível história que só poderia ser, mesmo, coisa de cemitério. Imaginem que o rapaz estava decidido a fazer uma criação de morcegos! É isso mesmo! Criação de mor-ce-gos!
Segundo seu relato havia lido, em um pedaço de folha de jornal misturado com um monturo de barro de uma sepultura recém aberta, que os cientistas da NASA estavam fazendo pesquisa com vários tipos de morcego, pois consideravam que esse animal, misto de mamífero com ave, poderia ser ideal para iniciar uma fauna aero-terrestre em uma colônia que estavam pretendendo fundar em Marte.
Todas as condições para o funcionamento da colônia já estavam sendo ultimadas e já havia, até mesmo, os cientistas e funcionários aptos a serem despachados para lá. Na Estação Espacial Internacional já estavam, algumas centenas deles, em estágio de adaptação à vida humana em ambiente artificial.
Os morcegos seriam despachados, em primeiro lugar, para que fossem avaliadas as suas reações considerando os tipos de pressão, temperatura, variações atmosféricas, etc... e, principalmente, como se reproduziriam, no futuro.
Como alimento seriam fornecidas rações de sangue bovino armazenadas em dispositivos especiais dotados de pontos em que a sucção seria facilmente propiciada.
Prosseguindo em sua proposta inusitada, acrescentou que o cemitério era um esconderijo de primeira para os animais e que as sepulturas em forma de mausoléu eram consideradas, por eles, de “O Minha Casa Minha Vida dos Morcegos”.
Raciocinando sobre o assunto, até imaginei que pudesse haver algum senso, nessa história, já que quase nada sabemos do que se faz, secretamente, nos cafundós dos laboratórios e nas cacholas de cientistas, governos e empresários financiadores de projetos.
Dando asas ao “Seu Caveira”, ouvi mais um pouco do que se embutia no seu projeto:
-- Pois é, seu moço! Parece que, num primeiro momento, estão interessados em morcegos do sexo feminino. Isso para que não haja briga entre as espécies em uma colônia só de machos. Assim estão querendo somente fêmeas por serem mais dóceis e adaptáveis.
Mais existe um entrave nisso pois, à noite, quando ativo, é muito arisco. Só pode ser pego com facilidade, durante o dia, quando estão dormindo nas sepulturas, pendurados de cabeça para baixo. Só que ainda não sei como descobrir o sexo dos bichos! Macho e fêmea, a gente pode virar de cima para baixo, de um lado para o outro e não enxerga nadica de nada!
Já achando que o tal Seu Caveira estava querendo tirar um sarro comigo, acabei por intervir, à minha moda, para encerrar o tétrico assunto:
-- Sabe, Seu Zé! Acho que já descobri um jeitinho maneiro para o senhor descobrir o lesco-lesco da bicharada!
-- Então diga, seu moço! Diga logo que logo no primeiro raio do Sol vou tratar do assunto!
-- Pois bem! O senhor pega lá um exemplar, cuidadosamente levanta a asinha e olha com bastante atenção para aquele lugarzinho lá no sovaco dele. Se tiver pelo, é macho! Se for raspado, é fêmea! Aí, para não ter mais dúvida, o senhor passa um pouquinho de esmalte vermelho nas unhazinhas dela e, pronto! Resolvida a questão"! O negócio é o sovaco! O resto são meros detalhes...
-- Antes de ouvir a resposta, levantei-me e saí de fininho. Afinal, quem sabe se o “Seu Caveira”, em pessoa não aparecesse para tirar satisfações comigo?
-- Fui para casa, caí na cama e dormi feito um morcego...
Amelius – 05/05/2013