O ultimo boêmio
O ultimo boêmio
O sol premiara aquele dia com os primeiros raios, desvirginando o véu da escuridão, invadindo, inundando de claridade, de vida, alegria e, quem sabe, até possivelmente, o amor... Tantos anos vivendo simplesmente a ilusão de viagens por mundos inexistentes, tendo como combustível o álcool e os devaneios da loucura, às vezes a religiosidade por ele inventada e experimentada em todas as estações do ano em casas de confusas convivências, claustros sombrios, desolados ou em ruínas, mas tristes, ambientes áridos, de vícios insanos e olhares mortiços e congestionados pela bebida e a torpeza inglória dos abandonados em uma fronteira que limita a vida do medo. Restos veneráveis de séculos nos quais os homens e as coisas tinham incrível semelhança. Caminhos, ruas, vielas e becos onde os menores acidentes despertam lembranças e cujo efeito geral faz suscitar uma espécie de devaneio maquinal de uma reentrância sombria, ocultada por imponente construção onde outrora fora um convento.
Não raro, certas ações da vida humana pareçam literalmente falando, inverossímeis, embora verdadeiras, porque quase sempre deixamos de esparzir sobre as nossas determinações espontâneas uma espécie de luz, mas que não explica a razão ou talvez a profunda paixão devesse ser analisada mais detidamente, o que negam muitos que preferem recusar os desenlaces a medir forças com os vínculos dos nós, dos liames que prendem um fato a outro na ordem moral do mundo social por nós inventado.
Raimundo Pantoja ou simplesmente Raimundão, assustado por fantasmas que povoavam sua mente, enveredou pelo alcoolismo como forma de espantar seus medos, criando um mundo espectral, fantasioso, em um cenário mais que perfeito, a zona do baixo meretrício, conclamou companheiros e se associou a um pequeno contingente de abandonados, viciados como ele próprio, mas, que aos poucos foram sendo sepultados, restando somente ele, que como garantia da ingenuidade de sua irreflexão e subtaneidade das efusões de sua alma que habitara um corpo solitário, sonhador, governado pela insanidade, desprovido do mínimo de conforto, abandonado e desassistido, sucumbia, consumida pela ausência de tudo, inclusive amigos de infortúnio que haviam partido antes. Mas, o destino urdira uma trama cujo cenário induz que o amor próprio e o interesse são partes integrantes do mesmo egoísmo e, não sei se em casos extremos como tal, a família ou o poder pátrio do Estado poderiam ter oportunizado a ele, uma vida menos sofrida, mas o certo é que se despede do mundo o ultimo boêmio da zona boemia de São Luis, que oxalá encontre a paz.