O RÁDIO AMARELO MOSTARDA
Hoje acordei melancólica, saudosa de muitas coisas perdidas e outras tantas ilusórias.
O dia amanheceu cinzento, um vento frio vindo do sul, esfria tudo a sua volta com um simples sopro. Passou por mim, arrepiei-me toda, senti gelar o pensamento, e assim o meu pensamento ficou inerte, preso nas lembranças idas há tanto tempo, quase esquecidas em uma página amarela da minha memória. Lembrei-me da história do rádio amarelo e sorri, um sorriso que eu nem me lembrava mais que existia. Foi assim como narro, há décadas, anos 80 precisamente.
A mãe, o pai e duas meninas moravam em uma velha casa de madeira, dessas típicas de fazendas do interior paulista, e era mesmo uma fazenda, à margem da rodovia Euclides de Oliveira Figueiredo.
A diversão da família era um rádio Motorola preto de 6 faixas que se bem sintonizado, ouviam até programas “dos estrangeiros” como diziam Maria e Manoel. O tal programa “dos estrangeiros” era de uma rádio paraguaia, a qual eles ouviam músicas e rasqueados animados, que dava vontade de dançar e as vezes os quatro dançavam naquela imensa sala de chão vermelho iluminada por luz de um lampião de luz pálida.
Mas o que gostavam mesmo era de ouvir as nossas músicas raízes. Como vimos o rádio era a vedete da família, tinha lugar cativo em cima da mesa da cozinha, ou quando iam dormir o mesmo ficava à cabeceira da cama, pois o mesmo servia como despertador, indicava a hora de levantar e ir ordenhar as vacas.
Ouviam a missa, as notícias de perto e de longe, dançavam ao som das músicas e eram felizes nesse mundo tão limitado. Um acontecimento mudou a rotina da família; a notícia da morte de uma parente transmitida pelo rádio levou o pai, a mãe e as meninas irem a cidade, à cidade de Andradina, a Terra do Rei do Gado. Então, pediram um dia de folga para o fazendeiro, depois de tudo acertado surge um impasse; levar ou não levar o rádio. Um certo tremor assombrou-os, o rádio era parte deles como deixa-lo? Mas como chegar a um velório com um rádio? Decidiram, com o coração apertado deixaram o rádio, não em cima da mesa, também não a cabeceira da cama, mas sim embaixo do colchão e bem camuflado com as cobertas.
Fecharam a casa, colocaram as travas nas portas e janelas, exceto em uma , a da cozinha, na casa não havia chaves ou fechaduras. A menina mais velha travou a porta depois que os pais e a caçula saíram, então ela puxou uma cadeira até a janela, alcançando-a pulou para fora; o pai então fecha a janela e e a escora com uma viga e assim embarcaram confiantes no ônibus que passava na rodovia a frente da casa da fazenda.
Foram e ficaram três dias e não um como haviam combinado com o fazendeiro, pois um segundo e terrível acontecimento tem lugar. Depois do enterro voltaram a casa dos parentes para pernoitar, com a intenção de pela manhã voltarem à fazenda, mas...Ao amanhecer o dia, foram surpreendidos pela notícia que a filha da falecida estava morta, morrera durante a noite enquanto dormia. Mas como? Demos-lhe boa noite à apenas algumas horas. Coitada, a morte da mãe foi demais para ela, e então ela acompanhou a mãe e assim com esse pensamento passou-se mais um dia e uma noite e ao entardecer do terceiro dia desembarcam do ônibus em frente da velha casa de fazenda às margens da rodovia.
O pai tira a viga, a menina mais velha pula a janela, e abre a porta e todos entram. A mãe foi apressada ao quarto buscar o rádio que estava no esconderijo, e para sua surpresa, o rádio não era mais preto e sim amarelo mostarda. Então Maria atônita, sem entender o que havia acontecido, grita para o marido: _ Manoel, o Manoel, venha cá homem.
Manoel aflito entra no quarto seguido pelas filhas, encontra Maria com um rádio amarelo nas mãos e não o rádio preto. Silêncio total, minutos se passam e todos continuam olhando para o rádio amarelo mostarda que Maria tem nas mãos, ninguém diz nada, apenas um enorme ponto de interrogação paira em suas mentes. O silêncio é então quebrado pela pergunta de Maria: _ Manoel você pintou o rádio? Manoel ainda perplexo pega o rádio e reconhece que não é o seu rádio, embora a marca seja a mesma, mas não é o seu rádio, Manoel então diz:
_ Isso só pode ser brincadeira do cão. Saiu do quarto com o rádio, seguido da mulher e das filhas e lança o rádio no quintal com raiva. A família atônita, janta a luz de lamparina, sem a companhia do rádio, sem Ave Maria, o silêncio é total, ninguém fala; mas os olhos de todos os quatro estão fixos no lugar onde deveria estar o rádio. Naquela noite não ouviram músicas nem o programa “dos estrangeiros”, dormiram mal; quando o galo cantou levantaram e cada qual foi cuidar de seus afazeres, e o rádio amarelo mostarda ficou o dia todo jogado no quintal. O dia passou, a tarde chegou e Manoel então pega o rádio do chão , limpa-o com a fralda da camisa, entra na cozinha e o coloca na mesa e todos se sentam automaticamente, então ouve-se uns chiados e depois um som limpo, era a Ave Maria, ninguém diz nada, apenas ouvem a missa agradecidos. Depois o jantar é servido e todos comem satisfeitos, ninguém fala, só o rádio amarelo mostarda.
Os dias passaram e como nunca conseguiram entender o que havia acontecido, ninguém tocou no assunto. E tudo continuou no seu curso como sempre foi. Esta história me foi contada quando junto com essa família, comíamos a mesa na velha casa de fazenda, a luz de uma lamparina, ouvindo a Ave Maria no rádio amarelo mostarda.