UM ENGRAXATE PRINCIPIANTE
O engraxate, nos dias de hoje, é uma figura em extinção. Normalmente, são senhores, experientes que a duras penas procuram manter a classe ainda viva.
No meu tempo de garoto, entre 9 a 13 anos, era comum o bando de engraxates pelas ruas. Os moleques tinham pontos fixos e muitas vezes tentavam conseguir mais de um, e por esta invasão provocavam muitas brigas.
Para ser engraxate, naquele tempo, era preciso ter algumas características básicas de um empreendedor de hoje. Precisava, principalmente , ter experiência no ofício. Não podia ter medo de enfrentar as dificuldades, saber inovar, e principalmente ser persistente.
Todo guri que se prestava, tinha como sonho construir sua própria caixa de engraxar e sair pelas ruas, com ela nas costas, praticando o ofício. Eu não fugi a regra.
A caixa de engraxar representava uma figura que conhecemos por trapézio. Basicamente montada por duas bases paralelas, uma menor e outra maior, e dois lados, não paralelos, que uniam estas duas bases. Normalmente, a base menor era formada por um caibro chanfrado nos seus lados para receber os lados não paralelos da caixa. O topo do caibro era chanfrado também, onde era pregado a madeira de apoio ao pé. Dentro da caixa eram armazenados os materiais necessário para o cumprimento do ofício de engraxate - As latas de graxas de cada cor; as escovas de dente para cada graxa; uma garrafa com água; um pano para limpeza do calçado; escovas para o brilho, pelo menos para cada cor de graxa; flanelas para cores diferentes e protetores de meia.
Eu era um praticante do ofício desde bem pequeno. Meu pai me ensinou e eu, como paga pelos conhecimentos adquiridos, engraxava todas as semanas os sapatos dele. Não ganhava dinheiro mais ganhava experiência.
E assim, um dia...
Para ganhar alguns trocados e poder ir ao matinê e comprar alguns gibis, ampliei meu campo de ação atingindo um mercado diferenciado - comecei a prestar serviço para algumas famílias de alto poder aquisitivo, destas que tem mais calçados que pés para calçá-los. Já estava quase com minha liberdade econômica decretada, quando surgiu o desejo de ampliar ainda mais o mercado, e atingir outro segmento - O segmento das ruas, onde os andantes precisavam manter sempre brilhantes seus lindos sapatos. Eu olhava com inveja aquela molecada, com as caixas nas costas.Necessitava urgente conhecer melhor este nicho e traçar as estratégia de ação.
Estudava comigo, no grupo escolar, um moleque engraxate. Ele sabendo de meus desejos me incentivou, ajudando no meu intento. Para minha aprendizagem, ofereceu-se para me levar nas suas andanças como companheiro nas engraxadas. Apresentou-me a seu grupo, num ponto frente a um bar. A aceitação pelo grupo foi imediata.
Nos primeiros dias iniciei, ao lado dele, apenas observando. Aos poucos fui me aventurando na busca do cliente. Entendi que nesta profissão você tem que usar um marketing pessoal muito agressivo - deve ser falante, simpático, mas continuar sendo moleque. Conhecer o gosto e o jeito de cada cliente é fundamental. Aprendi tudo isto com meu amigo, e até iniciei, algumas vezes, engraxando alguns calçados de seus fregueses com a caixa dele.
Gostei e me achei capaz. Teria agora que ter minhas próprias ferramentas e correr na conquista do mercado, trazendo clientes para minha caixa de engraxate. Esta era a meta.
Com a ajuda de meu amigo, fiz a caixa, e com o dinheiro que tinha economizado comprei e preparei o material para o inicio das atividades.
Pronto! lá estava eu indo todo feliz transvestido de engraxate com a caixa nas costas. O mercado exigia, e era uma estratégia de marketing pessoal, o garoto ir engraxar descalço, camisa semi aberta, calça curta e cabelos limpos e em desalinho.
Eu era o protótipo do engraxate. Comecei o trabalho.
O mercado dos engraxates era dividido em alguns segmentos - A estação de trem, a porta dos bares e o melhor segmento deles era os salões de barbearia.
Na porta do bar que estagiei, protegido pelo meu amigo, fiz algumas engraxadas, sentindo-me interdependente, senhor de si.
Com a autoconfiança adquirida, no dia seguinte, querendo administrar o negócio com independência, e atingir níveis crescentes de competitividade e rentabilidade, em busca de mais oportunidades, eu e minha caixa fomos a porta de um bar um pouco mais movimentado - era um ponto de ônibus.
Minha auto confiança esbarrou no conflito de interesses. No momento em que começava a atender o meu primeiro freguês, naquele movimentado bar, fez com que o grupo de engraxates que dominava aquele ponto viesse animadamente até mim, e sem perguntas ou qualquer tipo de explicação, cobrisse meu pobre esqueleto de porradas por todos os lados, Quebraram minha linda caixa, pisoteando toda minha ferramenta de trabalho, Fui obrigado a bater em retirada.
Entendi o recado que me deram! Sou um forasteiro, um invasor.
Todo esfolado e dolorido, voltei ao antigo segmento de mercado, mais seguro, de pleno domínio meu, e sem os truculentos concorrentes.
Até hoje, eu acho que, naquele tempo, não ampliei o negócio por falta de persistência.