QUANDO CONFIAR É PRECISO

Pelo final de uma tarde nublada de domingo ele caminhava através das ruas , mal vestido , tímido e receoso . E com extremo esforço , parecia também esconder as dores da fome . Ah , todos os olhares o perseguiam , sim . Por que ele era ... um homem negro , claramente , abandonado . E fora o negrume da sua pele o velho elemento determinador para a condenação , logo imposta pelo silêncio da vizinhança : estar à distância da raça humana , como fosse uma praga.

Mas ele andou até a minha casa , esperançoso . E eu , automática , desprezando a abertura de metal que outrora havíamos feito no portão de ferro para a nossa proteção , fui logo abrindo , dando o meu boa tarde distraído , típico dos que , por razões ininteligíveis estão , quase sempre , desligados da realidade . Então , ele conta , meio que atravessando a respiração , já estar a caminho de um abrigo mas que precisava de alguns trocados para sustentar-lhe as condições do pernoite , que não tinha a intenção de pedir o dinheiro sem oferecer , ao menos , a humildade na execução de um serviço que bem poderia ser o de varrer a calçada ou de capinar umas toucerinhas de mato ralo , já à vista . E como não parava de falar , desculpando-se à toa , acabou por chamar a atenção dos outros na casa , estes vindo até a varanda e encarando-o por alguns instantes .

Bem ao contrário do que se poderia esperar numa situação como aquela , o homem despertou-me a curiosidade ... Por que falava igual a qualquer outro passante , demonstrando o conhecimento das notícias , dos casos diários , das inquietações humanas . E tentei imaginar de onde o conheceria , se já o tinha visto nalgum lugar diferente . Mas a memória , quando dela precisamos pouco , termina colocando-nos à deriva do mundo e assim , nada lembrei . Acabrunhado , confessou que a barriga doía-lhe muito e foi providenciado um copo de café com leite , pão e manteiga , além de uma revista dentre as várias publicações religiosas que haviam na casa de uma das minhas irmãs . Segundo o que ela explicou , brevemente, ele recebia alguns textos que falavam sobre a necessidade de se trabalhar para comer , dos efeitos da caridade , dos perigos do mundo . Ele recebeu tudo com um sorriso e milhões de agradecimentos , despedindo-se a seguir mas avisando que estaria à disposição no caso de precisarmos de algum serviço . E tinha dado alguns passos na direção da rua quando voltou o rosto e disse-nos o seu nome , fazendo mesuras como na Idade Média , tratando com os nobres : - “ Jean Pierre , seu criado”.

Nosso criado ? Ah , não . Apenas mais um necessitado , mais um abandonado , mais um esquecido que viu-se obrigado a ser um pedinte . Ou talvez , mais um louco evadido do Pinnel , um marginal a andar pelas ruas do Rio de Janeiro , sempre invisível ao controle das autoridades . E poderia , sim , enveredar pelas casas a dentro , pondo-se a cometer violências e roubar tudo o que pudesse levar . Porque fui eu , a pessoa distraída , quem abriu-lhe o portão e ouviu-lhe uns minutos de prosa , compelindo aos outros da casa a dar-lhe de comer . Haveria condição mais fácil para um meliante , numa tarde de domingo ? No entanto , embora todo mundo saiba que aos nomes próprios estrangeiros não é correto que apliquemos traduções , o nome dele era João Pedro ...

Josí Viana
Enviado por Josí Viana em 25/05/2013
Reeditado em 25/05/2013
Código do texto: T4308771
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