Miquelino

Quando cheguei a Brasília, tive que aprender um novo modo de viver, assim como uma nova forma de ver o mundo. Aqui tudo era muito precário, pelo menos para nós, moradores dos acampamentos das construtoras. E Brasília era um imenso canteiro de obras, como nunca se viu no mundo moderno. Muitos estrangeiros aqui vinham apenas para ver com os seus próprios olhos o fenômeno da construção de uma cidade, destinada a ser a capital de um país de dimensões continentais.

Tudo era novo para mim, o ambiente, as pessoas. Havia gente de todas as origens, muita gente pobre, mas não miserável, gente de dignidade. Quase não havia mendigos nem desocupados, todo mundo encontrava algo para fazer e se orgulhava disso. Meu dia-a-dia era da escola para casa, não tínhamos lazer como se conhece hoje em dia. Televisão era coisa rara, só em preto e branco e a programação começava no final da tarde e terminava antes da meia noite. Aliás, só tínhamos luz elétrica de gerador, até às 22 horas. A rua era meu segundo lar. Ruas de terra, diga-se de passagem. A turma de garotos com quem eu andava tinha diversas opções de brincadeiras. Futebol era a primeira. Jogávamos descalços. Também podiamos pescar, passear de bicicleta, apanhar frutas do cerrado e tanta coisa mais, dependendo da época do ano.

Certa vez, recém-chegado, perambulando à noite sozinho pelas ruas desertas - não tínhamos medo disso - vi um vulto de homem se aproximar. Vinha claudicante, quase caindo, como se estivesse bêbado, coisa comum em finais de semana. Quando chegou mais perto, começou a correr, a seu modo, na minha direção, emitindo sons guturais que eu não entendia. Aí fiquei com medo e disparei. Sebo nas canelas !

Cheguei em casa assustado, mas não falei nada para ninguém. Não consegui dormir logo, pensando que talvez se tratasse de uma assombração ...

No dia seguinte, junto à minha turma, vimos um adulto vindo ao longe. Então os meninos começaram a chamar, gritando: Miquelino ! Miquelino ! Pega ! Pega ! Identifiquei que fosse a mesma pessoa da noite anterior. Me seguraram prá eu não fugir e o cara chegou perto. Era horrível, o rosto todo desfigurado, um olho quase que pendurado, o corpo alquebrado não ficava totalmente ereto. Vestia trajes rotos e sujos. Fiquei apavorado e aí ele me deu um forte abraço e começou a rir, junto com meus amigos. Suas mãos eram enormes e muito duras e calejadas. Ele vivia de apanhar lenha para as casas. Naquela época quase não havia fogão a gás nos acampamentos.

Demorei a me recuperar do susto. Então fiquei sabendo que ele era uma figura das ruas, ninguém conhecia bem a sua origem. Sabia-se apenas que quando criança foi atirado à uma fogueira por adultos malvados que queriam se divertir, depois de surrá-lo tanto que quebraram-lhe as pernas e os braços. Era órfão de pai e mãe e vivia como um cachorro sem dono, mendigando comida. Teve que se curar sozinho no mato, mas ficou quase que totalmente inválido. Nessa época Miquelino tinha uns 20 e poucos anos. Fiquei extremamente chocado, não imaginava sequer que pudesse haver tanta maldade assim no mundo.

Com o passar dos anos, descobri que era uma pessoa de um coração de ouro, já havia sofrido tanto que só podia procurar o bem. Tentava nos acompanhar nas nossas brincadeiras, mas era difícil para ele jogar futebol, por exemplo, ou andar de bicicleta. Até que tentava, queria estar sempre conosco. Nunca soube se ele tinha ao menos um leito de palha para dormir. Comida, ganhava nas casas.

Depois que sai do acampamento, nunca mais o vi nem soube dele, mas a sua imagem ficou indelévelmente marcada na minha memória. E especialmente aprendi de uma vez por todas, que as coisas nem as pessoas não são como aparentam ser.

Miquelino, onde quer que esteja, saiba que nunca esqueci de você ! Um forte abraço, daqueles que você tão bem sabia dar !

Brasília, 29 de março de 2007

Humberto DF
Enviado por Humberto DF em 29/03/2007
Reeditado em 30/03/2007
Código do texto: T430593