MIL ANOS COM VOCÊ
Te conheci num momento triste e esquecido, quando o céu estava sombrio e desestrelado, também desprovido de luar, contudo tão melancólico quanto um olhar desiludido. Guardei nas lembranças o teu perfume afável, teus gestos de abandono e saudade, teus olhos nadando em lágrimas, tua voz perdida no desafino, talvez sonhando em fazer tantas coisas, em realizar tantos feitos. Nadavas nas doces e suaves ondas dos devaneios. Não, nada, nunca, só a brisa em desespero rasgando as ruas, levantando poeira, respirando sobre as folhas, roçando teu rosto cansado, revolvendo sem entusiasmo os teus cabelos finos e negros como uma noite apagada. À frente, tão-somente o vácuo amorfo.
Tua ias sem rumo à procura de quê? Do talvez, decerto, dos senões imiscuídos nas entranhas do porvir, do mutismo angustiante, de algo que provavelmente nem sabias o que fosse, e te perdias nos próprios passos trôpegos, parecias flutuar como se levada somente pelo pensamento solitário perdido no coração do teu cérebro eunuco. Choravas e sorrias ao mesmo tempo, cantavas até, e eram músicas mórbidas como chuva de granizo destruindo telhados e arrancando árvores, como fogueiras chamuscando o ar aparvalhado e devastando o oxigênio vital, como gangurus enlouquecidos saltando sobre brasas ardentes, como crianças inocentes gritando o clamor dos famintos por seios túrgidos, por carinhos inexistentes, por abraços que jamais seriam dados. Abraços que, certamente, nunca recebeste. Nem deste.
Quisera não ter sido assim o nosso encontro, tão imerso nesse amargurante poço sem fundo de incertezas, de inesperada falta de esperança, de repentino lufar de gélido suspiro de dor, de dolorosas lantejoulas flamejantes brilhando sinistras nos pingos lacrimejantes que caíam dos teus olhos e salpicavam o chão seco e empoeirado. Oh, quem dera, quem dera! Quem dera, sim, tivesse sido de outra maneira mais sublime esse nosso encontro desesperado, em que passasse por nós um rio de ternura e nos molhasse todo com seu ar celestial, gorjeassem pássaros felizes sobrevoando nossas cabeças, cantarolassem melodiosos os anjos em festa ao nosso derredor, dançassem as pessoas transbordando e distribuindo felicidade como se fora o primeiro dia de inesgotável paraíso se abrindo aos nossos corações.
Todavia não foi assim, não houve fascinação, não se viram gargalhadas de alegria, ninguém beijou ninguém, afagos não foram feitos, carinhos caíram por terra ressequidos pela falta de desejo, risos se transformaram em choro alucinante, afloraram temores e tremores, corpos não se fundiram na intensidade do gozo, mãos não se pegaram afáveis, não foram trocados cumprimentos afetuosos, a simpatia fugiu dos olhares e se transformou em pesar, em esgar, em incertezas, em loucos vislumbres de ódio destilado sem qualquer razão plausível. E todo mundo chorava, sorrindo um sorriso sórdido, se lamentava mesmo sem haver sentido para isso, corria sem saber aonde ia, abria os braços em cruz e gritava "engula-me solidão!", jogava-se ao chão e rastejava feito serpente famélica ansiando por uma vítima cujo coração estivesse latejando, assustado por causa dela.
Preferi não adentrar o céu da tua boca com um translúcido beijo de língua, não chegar nem perto de ti para não ser contaminado com o lúgubre estampado no teu rosto, afastar-me em desabalada carreira, chorar meu próprio lamento, subir nos telhados úmidos, tentar voar para ficar bem longe de ti. Pois eu também estava mergulhado num turbilhão de melancolia, num oceano de inimagináveis tristezas. Um Norte adequado anelava meu espírito. Por essas razões e em virtude da força da amargura, achei por bem não abrir as portas do meu coração ao apelo de tua lúgubre ansiedade, de teus loucos apelos. Fugi, ou ao menos tentei. E chorei, sim chorei muito, em demasia, como deveras clamam as crianças. Quiçá pelo desespero sobremodo intenso, ou minha incapacidade de sorrir. Sem forças, abatido, desejando o que não me seria justo querer. Minhas lágrimas regaram o travesseiro, a fronha e a cama. Eu me encontrava sozinho em minha angústia, que não se pode unir à tua.