UM ZÉ NINGUÉM

ZÉ NINGUÉM NUM RICO PAÍS

Sou apenas e tão-somente um menino sem qualquer rumo perdido na fumaça do tempo, que jamais foi nem será qualquer nada ou qualquer ninguém, sou Zé sem eira nem beira, nunca ousei ser alfa, é certo que, provavelmente, serei omega em algum período da vida, pois esse é o quase certo destino da ralé. Meu nome é José Maria, nada mais que isso. É, simplesmente assim, porque meu sobrenome comum não tem a menor importância para ninguém mesmo. Quem haveria de se importar comigo? Já se passaram doze anos em minha existência tão seca e mirrada como as terras ensolaradas do Nordeste, agora caminho aos trancos e barranco pelos ásperos pedregulhos desse mundão idiota para os treze anos, e sou moleque muito, mas muito triste mesmo, meio que levado aos tropeços pelos sonhos e agarrado às asas das ilusões tolas. Imagine agora eu ousando sonhar, ora vejam só! Quanto atrevimento! E pobre tem o direito de entregar-se aos sonhos? Não dêem atenção, por favor, porque fica somente nisso, na minha boba ansiedade de querer abraçar os devaneios. Pois embora deseje adentrar o universo das utopias, só logro caminhar nas escarpas perigosas dos pesadelos, por seus lodaçais, em tantos pântanos, em muitas areias movediças. E sempre acabo despencando abismo abaixo.

Sou criatura sem rumo estrepada de verde e amarelo numa terra de fartura - para uns poucos, quem não sabe disso no Brasil? - Sabe aquele lixo que a ventania forte espalha pela cidade toda? Pois é, sou eu. Não, não peço desculpas por me expressar assim, dessa maneira grosseira, deseducada e malcriada, mas todos haverão de convir que me sobram inúmeras razões para o desabafo, isso posso garantir sem meias palavras. Para seu governo, não poderia ser de outra maneira, podem ter certeza disso. Afinal de contas, devido a circunstâncias para as quais eu não contribuí em nenhum momento, não disponho de tempo para brincar como os demais de minha idade e nem mesmo encontro razão plausível para gozar as folias naturais dessa infância sem qualquer graça que tem sido o passar dos meus dias, ano após ano. Preciso desse "trabalho" cotidiano para continuar, pelo menos, sobrevivendo.

É que eu, bem...eu sou guia de cego. Se eu não fosse guia de cego de meu pai terminaria sendo carvoeiro, carroceiro, flanelinha, qualquer coisa inútil numa sociedade exigente e preconceituosa. Como todos sabem, guia de cego pobre não é nada além de nada. Realizando uma ingrata tarefa impossível de ser deixada de lado, vou carregando meu pai pelas ruas e praças da cidade, levando-o o dia inteiro de um lado a outro e por todos os recantos a esmolar as pequenas migalhas que apenas alguns de coração mais brando atiram nas suas velhas mãos estiradas, enrugadas, trêmulas. E, enquanto o conduzo expondo essa chaga viva da pobreza que denigre a imagem de um país tão rico como o Brasil, mas tão injusto com a maioria dos seus cidadãos, cujo dinheiro público, como se vê no cotidiano dos noticiários, escoa ralo abaixo até o bolso de espoliadores e ladrões de colarinhos brancos, obrigo-me a recalcar ansiedades e desejos infantis, segurando as emoções para não permitir, em pleno burburinho da cidade, que as lágrimas desçam por meu rosto e o meu choro assuste as pessoas. Esse pranto, então, se perde recalcado em minhas entranhas.

Eu sei, é muito fácil para quem está do outro lado do problema, à margem confortável e segura do rio em turbilhão enquanto a correnteza me arrasta e afoga, criticar essa posição de desabafo por mim agora assumida. Quem por aí já experimentou passar o dia inteiro caminhando sem um rumo definido, o peso constante de um braço cansado debruçado sobre o ombro, debaixo de um sol escaldante ou sob uma garoa intermitente, atravessando o trânsito louco durante horas e horas, por toda a semana? Cada um sabe muito bem onde o sapato aperta, o velho chavão já apregoava isso, embora eu nem tenha sapato e sinta o aperto extremo de outras formas bem mais sofridas. Por isso, não se apressem em torcer a boca para o que estou afirmando com todas as letras. É bom refletir antes, miséria é um fardo pesado demais mesmo para nós, os mendigos. Só quem realmente sente na pele o peso dessa angústia sabe disso - como eu.

Confesso que me chega n'alma, de repente, quando avisto a meninada entretida em brincadeiras alegres e barulhentas, um violento choque de inveja circulando por meu corpo como veneno fatal de cobra naja despertando verdadeira maré de desânimo e melancolia em minha pobre alma. Nesses momentos, digo sem medo de extravasar, não dá mesmo para segurar o ódio e a repugnância contra tudo de errado que está aí fazendo o Brasil desembestar cada vez mais abismo abaixo da pobreza. Enquanto uns poucos se empanturram e se lambuzam com as pizzas e as farras com o dinheiro da Nação, enquanto o erário é fraudado por quantos foram escolhidos pelo povo para representá-lo. Então eu choro porque nada posso fazer para consertar isso. Ora, ora, e quem sou eu para ter essa pretensão? Quem pode contornar essa situação não faz nada e nem deseja de maneira nenhuma fazer, óbvio, imagine um pobre guia de cego pedinte que nem eu! Já sou escorraçado por estar vivo, imagina! Que altura minha humilde voz teria para clamar contra a podridão enlameando tantos ministérios e tantos colarinhos brancos?

Porém, não manifesto expressamente essa mágoa diante do meu pai, prefiro esconder dele minhas amarguras e procuro engolir os soluços da mesma maneira como engulo todos os sapos do cotidiano atravessados na minha garganta. E procurando não demonstrar a meu velho, pobre e cansado pai as dores que ferem minha alma, tantos já são os tormentos que o incomodam, a mágoa em meu coração se torna somente um queixume solitário, pesadelo só meu, longe dos já horrendos sentimentos que certamente pisoteiam seus pensamentos. E nisso recrudescem-me os pesares, explodem minhas tristezas, exalta-se-me a já incomensurável melancolia. Por isso, permito-me tão-somente o fluir das lágrimas silenciosas e os suspiros arrancados de minha conformação.

Eu sei, tudo bem, nossa história miserável não é diferente das demais e incontáveis existentes por esse Brasilzão cheio de constrastes. É deveras comum e tão sem graça quanto, reconheço. Espere um pouco, e daí, é bonito isso? Quantas crianças, deixando sua condição infantil, sem estudar nem brincar porque não tem tempo para isso, precisarão ser guias de cego para ter o pão de cada dia à mesa? Eu quero ser a criança que sou num país que me trate como gente e, mais ainda, como o seu futuro. Ou continuaremos entregando o bastão das nossas riquezas para os filhinhos dos que já tem nas mãos esse tesouro nacional que vem passando de pai para filho há décadas?

Um dia eu disse a meu pai: "o dinheiro é sujo, doente, miserável e assassino!" Ele direcionou seus olhos sem vida para o rumo de minha voz e quis balbuciar algo mas não conseguiu de pronto. Embargada a voz, perguntou: "por que você diz isso com tanto rancor, meu filho?" E por resposta afirmei: "as pessoas matam friamente por dinheiro!"

Sou apenas um brasileiro sem carteira de identidade, mendigo miserável num estranho País continental onde as riquezas naturais saltam aos olhos e dariam para proporcionar aos seus habitantes uma melhor qualidade de vida. Porém isso nunca aconteceu e é provável que nunca aconteça. Meu nome é só José Maria, nada mais do que simples guia de cego, criança triste que não tem tempo para brincar nem ser ninguém, que não tem tempo nem razão para sonhar, que muitas vezes passa fome e não vai para a escola porque não dispõe de sapato, nem roupa e muito menos horário disponível para essa finalidade de alta nobreza e própria dos que podem se dar a esse luxo. Sendo filho de pobre, serei pobre a vida inteira; se tivesse sido gerado por um desembargador, é claro que seria desembargador, se por um Juiz de Direito, Juiz de Direito, se por um deputado estadual ou federal, deputado estadual ou federal, se por um senador, senador...- essa foi a filosofia esdrúxula e estúpida que escutei de um comerciante cheleléu à porta de seu estabelecimento, quando lá eu e meu pai chegamos para pedir uma esmola pelo amor de Deus. E ele respondeu com zombeteiro sorriso que, por ser filho de mendigo eu seria mais um mendigo pelas ruas do Brasil, não tinha a menor dúvida quanto a essa verdade. Diante de tantos descalabros ocorrendo nesse imenso país desvairado, dominado por famílias de políticos perpetuadas no poder a perder de vista, eu acreditei na premissa dele. Que sou eu além de menino mendigo e futuro adulto mendigo? É uma questão de herança e genética. Meu nome é somente Zé, mais um Zé Ninguém entre tantos espalhados ruas e praças afora de um rico país continental, o osso do cão faminto, o mero pingo no “i” da pequenina ilha de marajás rodeada de miseráveis por todos os lados, o resto dos restos dos resíduos brasileiros.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 20/05/2013
Código do texto: T4300681
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.