O TRATOR E A CEGONHA

Eu me encontrava em uma cidade no interior deste país numa bela manhã de domingo sem ter o que fazer. Já que tive de trabalhar no sábado, nada programei para aquele domingo. Perguntei ao recepcionista do hotel o que havia para se ver na cidade.

- Temos a Bolsa do Boi e a Feira de Artesanato, tudo aqui pertinho, respondeu.

Na Bolsa do Boi vi algo inusitado. Rebanhos eram vendidos sem assinatura de quaisquer documentos. Os fazendeiros e compradores se reuniam num bar e discutiam, numa mesa, tomando uma cerveja, as condições do negócio: prazo de retirada da boiada, etc.

Um hóspede na hora do jantar conversando ao telefone do próprio hotel, pois não tínhamos ainda a telefonia celular e nem o telefone sem fio, dizia:

- Fechei mil cabeças da raça nelore de costa amarela... Eu vi a boiada de helicóptero... Vamos precisar de cinco peões.

Ainda se fazia negócio no fio da barba e isso apenas há 30 anos e diziam que se algum comprador desse calote, jamais voltaria a comprar um boi, mesmo que fosse à vista.

Dirigi-me à feira de artesanato e dois objetos me chamaram a atenção: um trator com caçamba feito com pedaços de caibros, trabalhados em uma marcenaria, pois os pneus eram perfeitos, inclusive com os sulcos e todas as peças estavam bem aparelhadas. Gostei tanto que acabei comprando para o meu filho, que devia ter uns quatro anos nessa época. Vi também umas travessas de barro, próprias para fazer peixes ensopados e comprei umas três ou quatro. O volume era grande, tinha que ser transportado fora das malas quando eu retornasse.

Quando, à noite, telefonei para casa, contei ao meu filho que lhe faria uma surpresa e também à minha esposa. Deixei-os ansiosos.

Fui para o aeroporto numa sexta-feira à tarde, mas naquele dia chovia copiosamente e o aeroporto foi interditado, sem previsão de liberação. Com todas as tralhas que eu costumava levar e mais os presentes, viajei mais duzentos quilômetros para uma cidade próxima, debaixo de um aguaceiro. Lá peguei um voo que me deixou no aeroporto de Cumbica, por volta de meia noite, e fiquei esperando um voo para o Rio de Janeiro que só se efetivou às quatro horas da madrugada de sábado. Cheguei a minha casa às cinco e meia, cansado e faminto, mas com toda a tralha e os presentes. Era para ter chegado sexta-feira por volta das vinte horas. Imaginem a minha dificuldade em ajeitar as travessas de barro e o trator no compartimento de bagagem de mão dos aviões. Eu me encontrava sozinho sem os habituais colegas de trabalho que pudessem me dar uma mãozinha.

- Ele te esperou até tarde e dizia o papai está demorando, disse minha esposa.

- Que houve?

- Muita chuva, o aeroporto ficou interditado, etc. etc. Cochilei em Cumbica.

- Está com fome?

- Sim, mas vou para a cama ver se cochilo mais um pouco e ver se me passa essa dor de cabeça que estou sentindo. Vou tomar um analgésico.

Acordei por volta de onze horas. O meu filho estava brincando com outros garotos no play.

- Santo, ele ficou tão decepcionado, fez até beicinho para chorar. E disse:

- Eu esperava um presente de loja, embrulhado com um papel bonito. O papai me traz um trator feio e ainda embrulhado com um jornal.

- Comprei numa feira de artesanato. E as travessas você gostou?

- Eu não vou usar isso em casa nunca!

- Por quê?

- Isso é para se ter em sítio, casa de campo. Imagine se vou usar uma coisa dessas!

Eu fiquei frustrado. Tanto sacrifício para nada. Não agradei o filho, nem a esposa e ficara ausente duas semanas. “Vai ter urucubaca assim no inferno”, pensei. O que diria a meu filho? Iria ao shopping comprar um presente? Não. Ele teria que ir comigo. Vá que não goste também.

Enquanto tomava café, comecei a pensar se eu não teria sentido saudade dos meus tempos de criança quando a gente mesmo tinha que fazer os brinquedos: caminhãozinho, carrinho de rolemãs (rolamento), patinete, pipas, estilingue, etc. Meu peixe na telha também tinha ido para o vinagre.

- Quanto às travessas, deixe que quando eu for a São Paulo, eu as dou de presente para minha mãe, ela vai gostar. Agora chame o menino que eu quero dar um abraço nele.

Meu filho estava triste, bem jururu. Lembrei-me como fiquei frustrado quando não ganhei a bicicleta prometida se eu passasse em primeiro lugar. Passei. Só ganhei-a quando tinha quatorze anos e foi para trabalhar.

- Filho, a cidade que o papai esteve é tão pequena e pobre que não tem lojas de brinquedos, shoppings, etc. Lá os meninos precisam fazer seus próprios brinquedos se quiserem brincar. Eu comprei para ajudar um menininho pobre. Você não gostou, desculpe. Eu deixo você escolher um quando a gente for ao shopping.

O semblante dele mudou, ficou menos triste. Meus sentimentos também, senti-me mais aliviado, já tinha passado o momento mais difícil. O trator foi para o armário de brinquedos.

Um dia veio um garoto brincar lá no nosso apartamento. Quando o armário foi aberto, o garoto se encantou com o trator e já começou a brincar.

Em tom de bronca o meu filho reagiu.

- Não! Com esse trator não! É presente do meu pai!

Gostei muito quando minha esposa me contou. O trator que até então estivera guardado, ficou enfeitando a cômoda. Mudamos do Rio de Janeiro para São Paulo e o trator ficou muito tempo em cima da estante até que faltasse espaço para troféus, CDs, disquetes, etc. Muitos brinquedos foram doados. O trator não.

Esse acontecimento me faz voltar no tempo. Corria o ano de 1946, e eu também tinha quatro anos. Minha mãe estava grávida de meu irmão e eu sempre perguntava quando a cegonha chegaria com o Zezinho. Nesse ano poucas crianças, ou nenhuma, naquela idade sabia o que era um parto. Eu não tinha amiguinhos e queria um irmãozinho para brincar.

- A cegonha já partiu com ele na cestinha, disse o meu pai.

- Mas está demorando muito, disse eu.

- Ela vem de muito longe.

Lembro-me que fiz várias vezes a pergunta e a resposta evidentemente era a mesma.

A casa em que morávamos era de alvenaria, mas sem emboço, tanto fora quanto dentro, tudo estava ainda no tijolo à vista e, também, não era forrada. Meu pai improvisara um forro feito com papel de sacos de cimento, deixando um vão num dos cantos.

- Veja, é por ali que a cegonha vai entrar com o Zezinho, dizia ele.

Era mês de maio, a madrugada era muito fria e havia muita cerração e minha mãe entrou em trabalho de parto. Meu pai levou-me para o caminhão com que ele trabalhava, direcionou os faróis acesos para o canto da casa onde estava o alçapão, dizendo:

- A cegonha já vai chegar e vamos vê-la trazendo o Zezinho.

Acho que percebendo que já tinha ocorrido o nascimento, desligou os faróis, mas tentava ligá-los dizendo:

- Ih! Descarregou o acumulador.

Minha tia Elvira apareceu na varanda, e disse:

- A cegonha já trouxe o Zezinho.

Puxa vida! Exclamou meu pai, bem na hora que descarregou o acumulador.

Corri para o quarto e minha mãe estava fraldando o bebê. Finalmente o Zezinho chegara. Ainda bem que era menino, felizmente tudo tinha dado certo. Ele recebeu o nome de Leonel José. Leonel em homenagem a um médico da família de minha mãe e José porque eu sempre perguntava pelo Zezinho, era o nome mais comum entre as crianças.

Pouco antes de meu pai vir a falecer, e sendo eu pai também, comentei com ele:

Pai, o senhor me contou uma mentira tão bonita, que eu nunca vou esquecer. Acreditei por muito tempo, até saber que cegonhas nunca transportaram crianças no bico. Quem foi levado no “bico” fui eu. Foi uma nobre e maravilhosa mentira. Parabéns!

PS. Desculpem-me por omitir a cidade em que comprei o trator, porque se trata de uma cidade bem provida de lojas e shoppings e muito bem urbanizada com jardins muito bem cuidados e de um povo bastante hospitaleiro, mas foi naquele momento a mais nobre desculpa que encontrei.

Hoje, 20 de maio, portanto, há 67 anos ocorreu o nascimento de meu irmão. Em homenagem, dedico a ele esta crônica. Parabéns pelo seu aniversário, meu irmão!!!! Que Deus sempre o proteja!!!

SANTO BRONZATO 20/5/2.013.

SANTO BRONZATO
Enviado por SANTO BRONZATO em 20/05/2013
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