A cidade acorda
Lentamente...
A neblina fria recobre as plantas, os bancos e o monumento do pequeno jardim.
Faz tênue a luz dos postes que ainda estão acesos a espera da plena luz do Sol para se desligarem.
Ele aparece lentamente, por de traz de um morro que insistentemente todos chamam de montanha.
Nas calçadas, só o barulho do meu salto, passo a passo cortando o vento frio que parece soprar só em minha direção.
Passa um carro ou outro e... Silêncio novamente. As luzes dos semáforos mudando de cor controlando um trânsito inexistente, controlando o nada.
Nos poucos bares que se abrem ou que não se fecharam, o primeiro café perfuma o ar. Há poucas pessoas no balcão destes bares. Se não estivessem tomando café, saboreando cada gole quente, pensaria em zumbis, envoltos na neblina, se movendo lentamente se protegendo do vento e do frio.
Os garis se movimentam e o roçar das vassouras no chão parece fazer parte do próprio corpo num estranho e silencioso bailado. Parecem invisíveis. Não falam, não sorriem, não olha o Sol nascer, não percebem o dia amanhecer.
Já é possível ver um ou outro estudante sonolento, sem pressa, com mochilas que parecem fazer parte de suas silhuetas se arrastando em direção às escolas. Me junto a eles e o sono ainda tenta roubar-me do mundo real. Como a própria cidade, tento acordar.
A cada esquina, pareço mais só e tento identificar sons no meio do silêncio. Consigo identificar um pássaro ou outro nas árvores que ainda sobraram, as orações ao longe em uma igreja, o barulho dos poucos carros deslizando no mal acabado asfalto. Tento adivinhar o som da cidade e descubro que ele se chama solidão. É isto que a cidade murmura ao acordar.
Pareço-me com um invasor quebrando esta solidão com o ruído dos meus passos. Ouço ainda um pequeno córrego que jaz morto há muito tempo engolido pelo esgoto e pelo lixo. Suas águas, como num suspiro agonizante, clamam pelas águas do verão que vingarão sua morte.
As horas passam e em meio à neblina que agora parece fugir do Sol, surgem mais carros. O asfalto agora desperta. A cada carro que passa o frio chega junto com o vento que faz algumas folhas se espalharem. Parece o cenário de algum filme, só falta a trilha sonora, pois o ator principal já está atuando: eu.
Próxima esquina, uma avenida se estende e já sei que encontrarei como em todas as manhãs aquele louco. Sim, um louco pelo mundo que desperta a rua com seu canto e orações incompreensíveis. Desperta quem vai trabalhar, quem quer ainda dormir e quem quer viver.
Nesta mesma rua, pontualmente, todas as manhãs, como num encontro marcado, cruzo com homem e seu cão. Faça chuva, Sol, frio ou calor, eles passam por mim e seguem o caminho. Consigo ouvi-lo dialogando com o cão. Parecem trocar velhas histórias, grandes segredos. Conseguem ser apenas um, sem se importar que alguém o ache louco também. Afinal, é no silêncio da madrugada que os loucos se revelam sem precisar do disfarce de homens sérios.
Sim, é no silêncio da madrugada que os bêbados se curam que os boêmios acham o caminho de casa, que os bandidos mostram a crueldade que só a alma humana pode abrigar. É no silêncio da madrugada que chego ao meu trabalho e na falta de algo mais útil, descrevo o meu caminho pelas ruas de uma cidade que desperta:
Len-ta-men-te...