Seis horas da tarde. Da Leopoldina sai o trem apinhado de gente, rumo a um subúrbio carioca. A multidão se acotovela tentando se ajeitar melhor. Os que estão sentados seguram os embrulhos dos que estão de pé. Os homens dormem ou fingem que dormem para não terem que ceder o lugar, conseguido a duras penas, às senhoras mais velhas.
A grande maioria da massa humana é composta de trabalhadores braçais e domésticas de volta a seus lares, onde, dentro de uma hora ou mais, se confrontarão com a miséria de seus casebres, o oposto das casas ricas onde trabalham. Isso, no entanto, não parece lhes importar. Vão num bate-papo incrementado sobre os mais variados assuntos.

No meio da multidão uma mão levantada sobressai, com aquele embrulho que parece uma bola.
- Cuidado aí, ô cara, não vai estragar o meu ganha-pão!
Só pode ser o Euclides. Aquela voz eu reconheceria mesmo que vivesse cem anos. Uma voz forte, alegre, dando sempre a impressão de que sabe o que está dizendo.
Mas o que será aquele embrulho que ele chama de “meu ganha-pão”. Pelo que me consta, o Euclides era escriturário e o que ele trás na mão, com tanto cuidado, tem o formato arredondado. Eu juraria que é uma bola de futebol, esporte para o qual ele nunca teve a menor habilidade. Lembro-me be
m de uma surra que ele levou, quando fez um gol contra, numa pelada lá em Olaria, nos idos de 1980.
Tento me aproximar, mas essa era uma tarefa mais difícil do que assistir jogo do Vasco na torcida do Flamengo. Vou pedindo licença, mas está difícil.
- Não dá, meu camarada - diz um negão, ou melhor, um afrodescendente com cara de poucos amigos - será que você não tá vendo que não dá pra passar nem com vaselina?
- Desculpe, sangue bom, é que eu queria falar ali com o meu amigo que está com a bola.
- Fala quando ele “saltá”, bonitão - diz a loura oxigenada jogando seu charme pra cima de mim, com um sorriso irresistível, dente-sim-dente-não.
Naturalmente ele vai esperar a plebe sair, penso eu. O embrulho, pelo visto, é sagrado e merece cuidados especiais.
A estação de Queimados se aproxima e as pessoas, ávidas por deixarem aquele recinto desconfortável, se agitam e se ajeitam. Somente um velho gordo se delicia esfregando-se nas ancas da vizinha que veio com ele para ser “protegida”.
O trem para. Como um rio, as pessoas vão jorrando. Eu fico atento. Não posso perder de vista o Euclides. Ele é um amigo que eu não vejo há muito e não posso perder essa oportunidade de falar com ele e saber das novidades - ele sempre as tem - e convidá-lo para uma cervejinha.
Euclides! - grito eu, discreto.
Não obtenho resposta. Grito mais alto ainda e nada.
Clidinho - grito eu a plenos pulmões.
Ele olha, procurando no meio da multidão.
- Tô conhecendo essa voz, diz tentando abrir caminho com seus ombros fortes.
Quando consegue se aproximar de mim me abraça dizendo que eu continuo igual, que não mudei nada.
- Mudar eu mudei. Estou mais velho e mais sábio, mas não para entender que o seu ganha-pão seja uma bola. Você era horrível. Lembra-se daquele gol contra?
- Epa, amigo velho, não avacalha o meu instrumento de trabalho. A bola não é uma simples bola, é uma bola de cristal. Agora eu sou vidente.
- Vi.. o quê?
- Vidente, pô... Nunca ouviu falar em vidente?
- De onde você tirou essa maluquice Clidinho? Não posso imaginar você, um cara que sempre foi honesto, enganando as pessoas!
- Mas eu não engano, muito pelo contrário. Eu dou pra elas um bocado de esperança e faço elas acreditarem nelas mesmas e com isso conseguirem o que desejam. Isso é a coisa mais honesta que já fiz.
- Mas você não era escriturário?
- Era, mas depois que perdi o emprego e fiquei um ano na casa da minha sogra, vivendo de favor, eu resolvi que tinha que arranjar uma nova profissão e achei que essa era a melhor.
- E onde é que você descolou essa bola de cristal? Você a leva para casa todos os dias?
- Não. Claro que não. Hoje eu tô levando a redonda porque amanhã é o aniversário do meu sogro e dona Neném vai fazer uma feijoada pra comemorar.
- E o que é que tem uma coisa a ver com a outra?
- Você não vai querer que a gente dê uma festa com a sala sem o globo, vai? Aliás, por falar em feijoada...pinta lá que a farra vai ser boa e aí a gente aproveita pra botar o papo em dia e tomar aquela loura gelada.

E lá se foi o Euclides, com a sua bola de cristal que ajuda as pessoas a acreditarem em si mesmas e serem mais felizes. O Euclides falou...tá falado.

 
edina bravo
Enviado por edina bravo em 19/05/2013
Reeditado em 05/02/2014
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