Reciclagem
Precisamos aprender a conviver com as nossas incoerências. É quase sempre difícil identificarmos as nossas indecências. Muito mais fácil é apontar as dos outros.
O reconhecimento disso não basta. Podem ser palavras que já tenhamos ouvido. E nos tenham trazido desconforto. Por implicarem no abrandamento de posições tradicionais. Por implicarem em novas regras. Quando a outras já estávamos habituados.
Muitas vezes é-nos mais fácil viver nesse tipo de prisão domiciliar mental. De que liberdade precisamos? Já estamos prontos. O que será necessário construir?
Pode ser que venha alguém e nos diga que podemos chegar a muito mais. Que embora a nossa existência esteja confinada a determinado período, podemos ser infinitos, enquanto existirmos. Porque podem ser múltiplas as nossas possibilidades de transformações. Como a capacidade de nos reconstruirmos. Ou de continuarmos nos que nos sucederem.
Mas pode ser também que nos venham contar que nada disso é implicitamente necessário. Que podemos deixar tudo como está que dará no mesmo. Pra quê correção de rota? Ninguém aqui é avião. Ou navio.
Seria melhor, no entanto, chegarmos nós mesmos a essa conclusão. Sem que precisássemos tê-la importado de alguém. Talvez nos sentíssemos mais aliviados.
Mas vamos vendo que tudo se aperfeiçoa. O navio, o avião. Métodos de inseminação. De introspecção. De eliminação física de pessoas. De combate a doenças. Será lícito, então, imaginarmos que também devamos nos aperfeiçoar. Que, ainda que quisermos, não continuaremos sendo os mesmos. Nem que seja para acompanharmos as transformações que acontecem fora da gente.
Podemos imaginar que essa revisão já esteja refletida em nós, que sucedemos aos que nos antecederam. Mas que terá continuidade nos que vierem depois da gente. O que pode nos motivar ao desejo de algum tipo ou tentativa de antecipação. Com a consequência de que nos levará eventualmente a abandonar alguma carga que já se torna dispensável no fardo que carregamos.
Isso não é muito difícil de entender ou aceitar, na medida em que os avanços tecnológicos se transformam num elemento com alto poder transformador. Em primeiro lugar, pelo progresso da medicina e suas implicações no aumento da expectativa de vida das pessoas. E em segundo, pela parafernália de equipamentos que vão se tornando inúteis com rapidez cada vez mais acentuada. O que nos submetem, os dois casos, a um número de transformações sempre mais frequentes. A que certamente não estavam sujeitos os que nos antecederam, por terem vivido em épocas mais remotas.
Então, apesar de termos lido ou escutado isso várias vezes, olhar pra dentro da gente ainda pode ser importante. O antigo “penso, logo existo” pode continuar sendo válido. Em que pese a vida frenética e intrépida que levamos e que nos submete aos intensos espasmos a que nos habituamos sem que possamos perceber.
Nesse sentido, não será nenhum absurdo pensarmos na necessidade de uma reciclagem. Que não será obviamente obrigatória. Mas pode ser recomendável.
Marina Di Camerota, Itália, 13/05/2013