O amigo certo de incertos 58 anos...
Em março de 2011 fez cinquenta anos que eu, um jovem tímido e inexperiente, viajei para o Rio de Janeiro, correndo atrás do meu sonho de ser feliz na cidade grande. Saí de São Luís do Maranhão com quarenta cruzeiros no bolso e o endereço do meu amigo Epitácio, no Rio de Janeiro; é claro que eu não podia contar muito com os minguados trocados que a minha pobre mãe arranjara às pressas, mas com o Epitácio, sim, esse eu poderia contar!
Conheci o Epitácio em 1955, quando fazíamos o 1º ano ginasial no Liceu Maranhense. Ele estava servindo o Exército, era baixo e forte, cabeça grande e inquieta, barulhento, brigão, temperamental e namorador; eu era um garoto de 14 anos, alto e magro como um cipó, tímido e introvertido, frustrado e raivoso com a vida que me colocara numa família que vivia em pobreza quase absoluta. Que tinha um sujeito tímido e pouco sociável a ver com um cara impetuoso e de um caráter comunicativo quase petulante? Nada mesmo! Mas, éramos assim, eu e o Epitácio, e, não obstante, tornamo-nos inseparáveis amigos. Continuamos assim até hoje – tão diferentes um do outro, mas ligados por uma amizade que não se consome nem no tempo nem na distância – 58 anos depois.
Entretanto, por motivos que me parecem diametralmente opostos, nós tínhamos ambos um temperamento belicoso, e só Deus sabe por qual milagre de convivência, nesses nossos muitos anos de amizade, nunca saímos no tapa para resolver as nossas divergências e conflitos de opiniões, que foram muitos. Permanecemos amigos incondicionais até hoje e deve haver algo que explique como duas pessoas tão diferentes conseguem manter uma forte e sólida amizade por quase 60 anos.
Durante toda a década de 80 que, em São Luís do Maranhão, por causa da minha desconcertante e avassaladora dependência química, eu transitei por uma sarjeta espiritual, moral, social, profissional e financeira, após ter caído, em apenas três anos, numa incrível decadência de vida – de gerente de banco, em 1978, para morador num casebre coberto de palha de piaçaba, em zona rural, em 1981 - amigos e parentes se afastaram de mim ou se lembravam de mim apenas para criticar.
Mas não foi assim com Epitácio, o único amigo que me permaneceu fiel. Quando vinha a São Luís do Maranhão, movia paus e pedras para descobrir o meu endereço, quase sempre em humildes casas de bairros periféricos da cidade. Ele descobria o endereço e ia atrás de mim, onde e como eu estivesse. Animava-me sempre para a recuperação, para a luta contra o meu carma alcoólico, mas sem me condenar, sem me criticar, como se dissesse: “Não importa o que és, nem o que fazes; sou teu amigo, cara, conta comigo.”
Penalizado com a minha decadência financeira, solidário com a minha dura e incessante luta para vencer o meu mal e, ao mesmo tempo, proteger e cuidar de dois filhos pequenos, algumas vezes Epitácio, ao voltar para o Rio de Janeiro, subia ao luxuoso apartamento de cobertura, no bairro do Humaitá, onde moravam a minha mãe e as minhas irmãs, para lhes pedir que me ajudassem de alguma forma. Era mal recebido, pois, na opinião delas, eu era uma ovelha negra, um recalcitrante espírito que se comprazia no erro e no mal. Epitácio reagia, fazia uma veemente defesa de mim, enquanto ser humano, que vivia uma dura fase de desequilíbrio emocional, e enquanto pai, que precisava de ajuda para criar os seus dois filhos pequenos.
Era uma dura batalha verbal: de um lado, elas, espíritas praticantes, mas intolerantes com as fraquezas alheias, esquecendo-se sempre que mãos que ajudam são mais santas do que lábios que rezam, e, de outro lado, Epitácio, com a sua persistente e inflamada argumentação: que eu era um bom homem, um bom pai, e merecia ser ajudado. Perdia sempre, pois não há argumentos que abalem corações endurecidos e preconceituosos; mas ficava magoado, frustrado, com se a ofensa tivesse sido feita para ele. E nessas horas eu lamentava o grande erro da natureza-mãe: era Epitácio que tinha que ser o meu irmão consanguíneo e não qualquer um daqueles seres hipócritas e indiferentes que, simplesmente, compartilharam comigo um mesmo ventre materno.
Mas Epitácio acabou sendo – ainda que não lhe corresse nas veias nenhuma gota do meu sangue – o meu verdadeiro irmão. Por isso, sou plenamente agradecido a Deus por continuarmos vivos e amigos até hoje.
Em março de 2011 fez cinquenta anos que eu, um jovem tímido e inexperiente, viajei para o Rio de Janeiro, correndo atrás do meu sonho de ser feliz na cidade grande. Saí de São Luís do Maranhão com quarenta cruzeiros no bolso e o endereço do meu amigo Epitácio, no Rio de Janeiro; é claro que eu não podia contar muito com os minguados trocados que a minha pobre mãe arranjara às pressas, mas com o Epitácio, sim, esse eu poderia contar!
Conheci o Epitácio em 1955, quando fazíamos o 1º ano ginasial no Liceu Maranhense. Ele estava servindo o Exército, era baixo e forte, cabeça grande e inquieta, barulhento, brigão, temperamental e namorador; eu era um garoto de 14 anos, alto e magro como um cipó, tímido e introvertido, frustrado e raivoso com a vida que me colocara numa família que vivia em pobreza quase absoluta. Que tinha um sujeito tímido e pouco sociável a ver com um cara impetuoso e de um caráter comunicativo quase petulante? Nada mesmo! Mas, éramos assim, eu e o Epitácio, e, não obstante, tornamo-nos inseparáveis amigos. Continuamos assim até hoje – tão diferentes um do outro, mas ligados por uma amizade que não se consome nem no tempo nem na distância – 58 anos depois.
Entretanto, por motivos que me parecem diametralmente opostos, nós tínhamos ambos um temperamento belicoso, e só Deus sabe por qual milagre de convivência, nesses nossos muitos anos de amizade, nunca saímos no tapa para resolver as nossas divergências e conflitos de opiniões, que foram muitos. Permanecemos amigos incondicionais até hoje e deve haver algo que explique como duas pessoas tão diferentes conseguem manter uma forte e sólida amizade por quase 60 anos.
Durante toda a década de 80 que, em São Luís do Maranhão, por causa da minha desconcertante e avassaladora dependência química, eu transitei por uma sarjeta espiritual, moral, social, profissional e financeira, após ter caído, em apenas três anos, numa incrível decadência de vida – de gerente de banco, em 1978, para morador num casebre coberto de palha de piaçaba, em zona rural, em 1981 - amigos e parentes se afastaram de mim ou se lembravam de mim apenas para criticar.
Mas não foi assim com Epitácio, o único amigo que me permaneceu fiel. Quando vinha a São Luís do Maranhão, movia paus e pedras para descobrir o meu endereço, quase sempre em humildes casas de bairros periféricos da cidade. Ele descobria o endereço e ia atrás de mim, onde e como eu estivesse. Animava-me sempre para a recuperação, para a luta contra o meu carma alcoólico, mas sem me condenar, sem me criticar, como se dissesse: “Não importa o que és, nem o que fazes; sou teu amigo, cara, conta comigo.”
Penalizado com a minha decadência financeira, solidário com a minha dura e incessante luta para vencer o meu mal e, ao mesmo tempo, proteger e cuidar de dois filhos pequenos, algumas vezes Epitácio, ao voltar para o Rio de Janeiro, subia ao luxuoso apartamento de cobertura, no bairro do Humaitá, onde moravam a minha mãe e as minhas irmãs, para lhes pedir que me ajudassem de alguma forma. Era mal recebido, pois, na opinião delas, eu era uma ovelha negra, um recalcitrante espírito que se comprazia no erro e no mal. Epitácio reagia, fazia uma veemente defesa de mim, enquanto ser humano, que vivia uma dura fase de desequilíbrio emocional, e enquanto pai, que precisava de ajuda para criar os seus dois filhos pequenos.
Era uma dura batalha verbal: de um lado, elas, espíritas praticantes, mas intolerantes com as fraquezas alheias, esquecendo-se sempre que mãos que ajudam são mais santas do que lábios que rezam, e, de outro lado, Epitácio, com a sua persistente e inflamada argumentação: que eu era um bom homem, um bom pai, e merecia ser ajudado. Perdia sempre, pois não há argumentos que abalem corações endurecidos e preconceituosos; mas ficava magoado, frustrado, com se a ofensa tivesse sido feita para ele. E nessas horas eu lamentava o grande erro da natureza-mãe: era Epitácio que tinha que ser o meu irmão consanguíneo e não qualquer um daqueles seres hipócritas e indiferentes que, simplesmente, compartilharam comigo um mesmo ventre materno.
Mas Epitácio acabou sendo – ainda que não lhe corresse nas veias nenhuma gota do meu sangue – o meu verdadeiro irmão. Por isso, sou plenamente agradecido a Deus por continuarmos vivos e amigos até hoje.