A Porta...
Ela era viúva há quase 15 anos, e perderá toda juventude, ou parte dela pelo menos. Casou cedo, não teve filhos, viveu uma vida sem sobressaltos junto ao marido, funcionário público, bom homem, que agora morava na memoria dela como um período quase que massificado, aliais era massificado, os 11 anos de casamento no seu ver eram como um borrão, onde ela não podia distinguir um dia, de um mês ou de um ano... afinal tinham sidos todos iguais.
Quando ele morreu ela tinha 31 anos, e ela fez todo o funeral conforme o costume da sociedade... Foi um inferno. Caixão, velas, flores, atestados, e documentos falsos dos quais ela escapou de assinar por pouco. Ele não era, bem, não era um modelo de beleza, nem de marido, era bom sim, para os vizinhos, para a família, e para ela até certo ponto, o fato é que ele a reprimia sexualmente e intelectualmente de uma forma absurda. Ele era daqueles que bradavam aos quatro cantos : -Lugar de mulher é em casa, na cozinha, e no quarto quando chamada".
Ele deixou a pensão, até rica por sinal e uma mulher retraída psicologicamente que amargava todos os dias aquele casamento, onde ela não tinha direito sequer de sair na rua. Ele nunca bateu nela, isso ela nunca admitiria, mas durante aqueles 14 anos de viuvez ela se perguntou o porquê daquela submissão absurda. De vez em quando ela ouvia a voz da mãe lhe aconselhando a seguir essa conduta e imediatamente lembrava-se das palavras de um padre que citando a bíblia certa feita soltou no sermão : -"Mulher, sede submissa ao homem". Isso ficou gravado e foi passando, da infância,para adolescência e de lá pra maior idade e só ai depois de muito tempo, ao folhear a bíblia, o único livro a que ela tinha acesso, ela descobriu a continuação da sentença que a marcou durante toda vida: "Homem, amai a tua esposa", mas já era tarde demais.
Outra questão que a incomodava eram os livros. O marido tinha uma vasta biblioteca, trancada, e só ele tinha a chave. Ela vislumbrava pelo canto da porta aquele amontoado de livros, brochuras,cadernos, empilhados em vastas prateleiras, só que por mais incrível que parecesse isso não causava nela nenhum tipo de estranhamento, deslumbre ou qualquer outro sentimento diante aquele mundo desconhecido, afinal a enorme casa lhe dava afazeres demais e ela sempre fora educada para administrar bem uma casa. Ela trazia um ranço de uma educação voltada para o papel determinado da mulher no lar, no casamento e na vida social.
O paradoxo é que ela a libertação para tudo isso estava atrás de uma porta que dava para sua sala, sempre bem arrumada e com móveis impecáveis que ela fazia questão de supervisionar a limpeza. Claro que ela não tinha a mínima consciência disso, todo o seu mundo era a casa, os criados, o marido e os filhos que talvez viessem um dia.
Esse era outro problema pra ela, porque "mulher boa era mulher parideira" e mesmo com todo o tempo de casamento nunca nenhum sinal de gravidez se apresentou. Pra família era quase uma aberração e ela realmente não sabia o porque, até se culpava por odiar as relações sexuais semanais com o marido, achava que a falta de filhos era castigo pelo asco que sentia do marido.
E eram esses mesmos questionamentos que se passavam na sua cabeça naquele dia, durante uma caminhada, se bem que não eram mais questionamentos eram lembranças... Enquanto ela caminhava ela ia rememorando aqueles anos. Primeiro o casamento, aliais, primeiro os ensinamentos de infância, depois o casamento, a viuvez e os anos que se seguiram depois dela.
Na verdade, os anos após a morte dele foram pra ela os anos da libertação e tudo se passou da forma mais simples possível, ela atravessou uma porta e lá estava uma boa parte do conhecimento já produzido no mundo. Um conhecimento libertário, igualitário, revelador, era o mundo. Foi uma verdadeira epifania pra ela atravessar aquela porta, primeiro sentiu como se estivesse traindo o marido, afinal ali era proibido, mas justamento por isso, pelo proibido foi que ela deu os primeiros passos em direção as estantes e consequentemente a abertura do seu mundo.
Ali ela se encontrou... Ou encontrou, anjos, luzes, formas, cores, chamas que só as palavras podem dar a uma pessoa. Ali ela se dotou de uma força descomunal para ser ela finalmente. Ser ela. Se pensar como um ser independente psicologicamente, um ser rico socialmente, um ser cercado de relações sociais variadas, ela passou a pensar assim. Ela passou a se pensar. Ela encontrou a verdadeira beleza de seu ser em si mesmo, através da libertação que só o mundo das letras, das palavras e do livre pensamento podem ofertar assim tão gratuitamente.
Passou a se amar e a amar e não faltaram amantes em sua cama, convivas à sua mesa, ideias em sua mente. Sem querer ele lhe deixará a maior herança de todas: A VIDA...