Pés descalços
Certo dia, ao parar em um semáforo no bairro Coração Eucarístico, fui abordado por um adolescente, com cerca de 13 anos, apesar de ser bem alto e esguio. Receoso, abri o vidro do carro dois tímidos centímetros. Pela greta da janela ele entregou-me um roto e ensebado pedaço de papel; estando assim devido ao manuseio constante. O papel dizia o seguinte: “Estou pedindo ajuda para almoçar ou jantar. Deus te ajude.” Devolvi o papel solitário. O menino ainda hesitou parado por dois segundos, pensando receber alguma coisa. Sua percepção aguçada disse-lhe que não receberia nada de mim. Retirou-se.
Eu o observei retirar-se. Ele não estava mal vestido, contudo algo me chamou a atenção, consternando meu coração: Seus pés estavam descalços, não apenas descalços, mas marcados pelo pretume da fuligem da rua.
Foram poucos os segundos em que mirei aquele menino retirar-se. Lembrei-me de meu filho, mesma faixa estaria, também adolescente, também alto e esguio. Senti-me culpado por aquele menino estar descalço. Pensei na geração de adolescentes atuais, os quais se ostentam com tênis caríssimos; mas aquele menino estava descalço.
Toda a minha austeridade ruiu. Queria dar a ele um tênis, mas imaginei que não o veria mais. Abri todo o vidro do carro, buzinei e acenei chamando-o. Ele caminhou célere. Enquanto estendia-lhe o dinheiro, olhei em seus olhos; antes eu não havia olhado em seus olhos. Normalmente não olhamos as pessoas nos olhos, principalmente aqueles considerados inferiores devido ao estado de mendicância em que se encontram. Após ver-lhe os pés desnudos, fitei-lhe os olhos. Seu olhar era sóbrio, firme e humilde; isso me doeu mais ainda. Observei-lhe: “isso não vai virar craque, não né?” Sua resposta foi firme e serena, sem argumentações: “Não!” Ele afastou-se outra vez com os pés descalços, marca autêntica da pobreza e humildade; principalmente para um adolescente.
Em minhas loucuras e desvarios, já andei descalço durante 77 dias por voto de humilhação. Fui discriminado, criticado, censurado, incompreendido, humilhado e até admirado. Nesse mundo de ostentação e luxúria, pés descalços não têm lugar. Nesse mundo em que somos todos juízes, somos também réus.
Descalçar os pés é também sinal de renúncia, de negação de si mesmo. Por isso, tanto a Moisés quanto a Josué, Deus ordenou-lhes que se descalçassem a fim de se aproximarem dele. Descalçar-se é abrir mão das próprias bases para assumir Deus como base única para a vida.
Olhamos os pés das pessoas para sabermos sua condição sócio-econômica e fazermos nossos julgamentos; mas não podemos deixar de olhar também em seus olhos, assim veremos a alma de um ser humano, muitas vezes sofrida, que espera de nós, na maioria das vezes, só um olhar de igual para igual, e nem seria muito esperar também um sorriso.
(Extraído do meu livro: O Cronista)