Relato de Sobrevivência
Eu era filho de pais separados (ainda sou!) e tinha doze anos, numa época que não se falava em caos aéreo e os lanches servidos (refeições, na verdade) nos voos eram bem melhores. Estava indo sozinho do Rio de Janeiro para visitar meu pai em Ilhéus. Éramos três crianças naqueles assentos prefericiais na frente do avião e todos faríamos conexão em São Paulo: eu para Bahia e as outras duas para a Alemanha. Chegando no desembarque, aguardávamos nossos voos impacientemente, como normal de toda criança. O problema foi a funcionária da companhia aérea que trocou as bolas e pensou que eu fosse para a Europa também (detalhe, eu moreninho no meio daqueles lourinhos dos olhos azuis, ou ia de mucamo ou de gaiato, já que as cotas ainda não tinham sido criadas... ). Quando ela descobriu que meu destino era logo ali e depois de surtar discretamente com as amigas, meu voo já tinha decolado há tempos. Como não tinha mais nenhum horário disponível para Ilhéus naquele dia eu tinha duas opções: Voltar para o Rio e tentar tudo de novo na manhã seguinte ou dormir em um hotel em Guarulhos e sair no dia seguinte bem cedinho. Minha mãe ouvindo as opções atentamente e depois de xingar um pouco as funcionárias (brincadeirinha, que ela não é disso), decidiu confiar em mim "alone" num quarto de hotel. Eu, sem malas, apenas com meu Super Nintendo nas mãos, sem muita coragem e com dor de cabeça ainda tive que pegar um táxi e ir desacompanhado ao bendito hotel.
Senti-me um pouco aquele guri americano do "Esqueceram de Mim" só que sem aquelas parafernalhas todas e confuso com a banheira do quarto (ah, se fosse nos dias de hoje!!!). Jantei sozinho, fartei-me em um buffet incrível, vi o Timão jogar contra o Galo e tive um certo gostinho de como se leva um boa vida. Pena que a inocência e o nervosismo não me deixaram usufruir de mais o que poderia aproveitar. O serviço de despertador do hotel me acordou e o de transporte me levou até o aeroporto. Lá sem erros embarquei para Salvador em um Jumbo - assim chamavam na época - e depois troquei por outro até a Terra da Gabriela.
Saldo da história: Quase enfartei meu pai, descobri palavrões novos com a minha mãe, causei comoção na vizinhança e quase parei numa caixinha de leite. Ah, e hoje eu poderia estar falando alemão e comendo chucrute!!!! Sem contar que minhas malas foram encontradas em Buenos Aires...,
Depois disso nunca mais hotel de luxo, meu pai cortou minhas viagens aéreas e mamãe para me castigar, ameaçava me mandar para Berlim.
Sei que essa não é uma grande história de superação frente a outras, mas para mim, um menino de doze anos, sozinho num quarto de hotel gigante, em uma cidade desconhecida, tendo que passar uma noite confusa sem poder jogar seu videogame e aprender usar corretamente o guardanapo, foi uma superação digna de gigantes! Agora, só de vingança, sou eu quem volta e meia perco um voo...