PADRE FRANCISCO
Todas as quintas-feiras véspera da primeira sexta-feira do mês, nos era imposta a obrigação de participar do Sacramento da Confissão, para que no dia seguinte pudéssemos tomar parte no Sacramento da Eucaristia em honra ao Sagrado Coração de Jesus. Na quarta-feira começava o friozinho na barriga, suor frio, ansiedade... Era um Deus nos acuda.
O Ginásio Salesiano constituía-se como referência regional na formação moral-cívico-religiosa; educação rígida e austera, alicerçada no respeito e na disciplina; além de uma equipe destacada de professores, sobressaindo nomes como dona Quininha,prof. Luís, prof. Lessa, prof. Macário, padre Mário (corró), padre Esaú, padre Manoel, padre Luís, tendo na direção o padre Gino Moratelli. Funcionando em dois turnos e somente masculino, tinha a manhã dedicada ao ginásio e a tarde ao primário.
Padre Francisco Pinkoski, fugitivo político da Polônia, aos quase 70 anos chega ao Juazeiro pelas mãos da Congregação de São João Bosco. Grandão, branco, recurvado, olhos azuis, cabelos brancos à moda escovinha baixo, sotaque ainda marcadamente polaco, chapéu preto de massa, cilíndrico, batina preta, sapatos pretos e meias brancas, a inseparável pasta e o guarda-chuva que fazia muitas vezes o papel de bengala, no dá a conotação de quem foi este padre santo. Compadre dos meus pais (foi ele que deu o nome ao meu irmão Aldo Marcozzi), era alvo de toda atenção quando nos visitava. Havia sempre um bolo preparado por mamãe que ele se deliciava (lembro que tinha goiaba com queijo ralado). Visita que demorava duas horas ou mais. A gente ficava por ali ouvindo aquela “fala” estranha e vendo o seu jeito. Não parava de puxar as buchechas de adultos e crianças ao mesmo tempo que dizia:
- Bichinho bonitinho! Bichinha bonitinha!
Quando se levantava a carona estava garantida.
O seu Ministério (serviço) consistia em levar Jesus Eucarístico aos doentes e moribundos. Papai era o seu motorista preferido nestas missões. Corria de boca em boca que numa de suas visitas ao “Arisco”, entrou em casa de uma velhinha à beira da morte. Não havia ninguém para ajudá-lo. Muita gente viu que certo tempo depois, saiu um menino de camisa branca passada, calça cinza e sapatos pretos, com um terço na mão. Acreditam ter sido Domingos Sávio.
Quinta-feira. Dia da confissão. Mãos geladas. Frio. Medo. Quatro sacerdotes confessando. Três filas pequenas. Uma fila enorme. Eu ali pra escolher. As pequenas passam rápido. Escolho uma delas. Sou o terceiro. Rezo pra hora não chegar, ou chegar. Sei lá. Chegou. Ajoelho-me. Um quadradinho de palha entrelaçada me separa do padre. Não o vejo, mas reconheço a sua voz. Aí o suor aumenta, a hipotermia acentua-se, o pavor se instala de vez...
- Quando se confessou pela última vez?
- Faaaz ummm me-mê-mês, paaadre.
- Conte os seus pecados.
A hora temida. Comecei, o medo foi passando, a temperatura se estabilizando, o suor sumindo... Estava indo muito bem. De repente lembrei d-a-q-u-e-l-e. Voltou toda a sintomatologia confessional. Criei coragem. Agora ou nunca:
- Padre, eu bebi o vinho da missa que o padre Francisco guardou na sacristia.
- O quê? Você bebeu o vinho da missa?
- Foi só um cálice... e mais outro... e mais meio. Só.
- Se você ainda beber o vinho da missa a sua língua vai cair todinha. Ouviu?
- Sim senhor.
- Reze o ato de contrição.
- ... e espero alcançar o perdão das minhas culpas, pela vossa infinita misericórdia. Amém
- Sua penitência é rezar um terço, de joelhos, para Nossa Senhora Auxiliadora.
Quando levantei e saí apressadamente, ouvi:
- Não beba mais vinho da missa não!
Jurei que com ele, confissão, jamais.
Na véspera da primeira sexta do mês seguinte surge a grande oportunidade de descobrir o mistério da fila do padre Francisco. Esperei quase uma hora ou mais. Chegada a minha vez, ajoelhei-me, tranqüilo e sem temor. Acusei os pecados, inclusive aquele. Perdoou-me e deu-me a penitência de rezar três ave-marias para Nossa Senhora. Ao passar pela portinhola frontal do confessionário, ele abriu as cortinas e me chamou. Aproximei-me. Apertou minhas bochecas e disse:
- Bichinho bonitinho, hahaha! Bichinho bonitinho!
Saí da capela alegre e feliz. Havia descoberto o mistério da enorme fila.
- Sabe por que os alunos só queriam se confessar com o padre Francisco? Ele não ouvia praticamente nada. Estava quase com surdez total.
Relembrando estas histórias, aporta ao meu coração um sentimento de ternura, respeito e carinho por aquele homem de Deus; e ao mesmo tempo minha alma se enche de esperança, porque no céu, tenho mais um intercessor.
- Padre Francisco, pede por nós.
ALMacêdo