As implicações de uma partida
AS IMPLICAÇÕES DE UMA PARTIDA
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 15.05.13)
Então tu te encontras no meio do aeroporto. Ninguém se encontra por acaso no meio de um aeroporto movimentado: houve uma longa sequência de eventos preparatórios para que te encontrasses assim na ala internacional do aeroporto fervente de gente. Como o teu objetivo é partires para a Europa, fez-se necessário um certo planejamento da viagem, coisas tiveram que ser alinhavadas com as pessoas.
Houve, por exemplo, um motorista de táxi que te deixou na estação de passageiros. Foi um deslocamento longo e demorado até cruzares a cidade. Também isto teve de ser levado em conta para poderes te encontrar no aeroporto precisamente nessa hora. Nada foi casual, nada padeceu de geração espontânea.
Além disso, tiveste de assumir compromissos para o futuro imediato a fim de poderes te ausentar assim do continente em que moras e no qual trabalhas. O caso do taxista citado: vocês começaram a discutir futebol até afirmares que, embora tendo todos os motivos para preferir a Chapecoense como campeã do Estado, ainda assim acreditavas que o Criciúma ganharia por 7 a 1 o derradeiro jogo da final do Catarinense, lá mesmo em Chapecó. Quando o motorista duvidou do teu prognóstico, a coisa virou negócio. Simplesmente porque lhe disseste (muito mais do que apostaste) que darias cinco mil a ele, contra nada se acertasses o resultado do jogo, caso o placar fosse outro qualquer. E então deste ao homem estupefacto, durante mais um sinal vermelho, o teu cartão de visitas com endereços, "e-mails" e telefones, tanto comerciais como pessoais, para que ele te pudesse cobrar o valor prometido acaso fizesse direito à soma.
Despachaste bagagem, assinaste declaração de que havias comprado no País o caríssimo computador de mão que sempre carregas contigo, esse maravilhoso aparelho que filma, fotografa, conecta-se às redes sociais, localiza-se por GPS e até faz e recebe ligações telefônicas, escolheste assento, pagaste uma boa refeição com o teu cartão de crédito, conversaste com um monte de pessoas pelas quais te fizeste notar graças às tuas peculiaridades, sem contar que já havias reservado carros e hotéis e marcado encontros e reuniões na Europa, onde te aguardam agentes, guias, acompanhantes, parceiros e amigos.
Embarcado, te viste envolvido numa desagradável discussão, que chamou a atenção de todos devido aos modos brutos e grosseiros do outro, sobre o lugar que te cabia na aeronave. Tiveste então vontade de te encolher, de te esconder, de sumir dali, tão profundamente envergonhado te encontravas.
Foi quando despertaste: não do sono, mas do sonho. O sonho acabou, assim bruscamente. Alguém te poderá dizer que os sonhos sempre acabam bruscamente mesmo.
Então te livraste de tudo, pronto para retomares tua rotina cotidiana de funcionário subalterno, mas deixaste para trás uma dúvida que te há de atormentar pelos dias a fio: como estarão os outros todos com quem lidaste naquelas horas de aeroporto? Quem honrará tuas reservas europeias, como evitarás o descrédito que se abaterá sobre o teu nome? Que dirá da tua covarde evasão o homem com quem brigaste no avião pelo lugar na janela? Quem haverá de retirar no destino a bagagem que já havias despachado? Melhor ainda: quem o fizer, terá a delicadeza e a decência de mandá-la de volta para ti? E se der 7 a 1 para o Criciúma, que escândalo não fará o motorista de táxi se não te localizar de imediato?
Mais interessante de tudo: que informações dará de ti o GPS do teu telefone inteligente?
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Amilcar Neves, envolvido com a criação de uma nova novela, é escritor com oito livros de ficção publicados, alguns dos quais à venda no sítio da TECC Editora, em http://www.tecceditora.com.
"Somente teremos discussões salutares neste País se respeitarmos a História."
Eu Mesmo, em 17.04.13, respondendo a "e-mail" sobre golpe de 1964 e ditadura de 21 anos.