A REALIDADE NO ESPELHO

(em memória de Roland Barthes, mestre do Colégio de França)

Cada vez mais chego à conclusão de que a literatura, enquanto escritura, é fruto de carências, da necessidade de conjeturar e tentar construir afagos em si próprio, jungido na compreensão de que é preciso ter solidariedade para com o irmão na hora do sofrimento.

Que palavra difícil de ser bem entendida este tal de “sofrimento”! Que horrorosa sensação esta, traduzir as perdas para a história pessoal! Tudo parece tão distante do autor, tão piegas para quem nos lê...

É mero confessionário, diriam uns. Outros – racionais, cerebrinos somente para o necessitado, não para si – encontrariam fáceis soluções para sofregar a súplica de amor, de mínima atenção.

Carências, coragem para a escrituração do que nos vêm à cabeça, é o desafio para a lavratura da prosa ou do poema. Esta lúcida e esquálida criação que aflora nos dedos, traduzida pelos signos...

Eu mesmo, agora acostumado ao olho pálido de meu interlocutor, dedilho ao computador as agruras dos outros, dependendo da veemência com que vem o pedido de socorro.

Interpreto a pungência da dor do interlocutor sem que identifique a sua figura antropomórfica. Quando muito, em alguns sítios, apenas a fotografia, mas a sua voz varre, potente, o meu subjetivo, escanaeia macroscopicamente o tubo intelectivo à busca de algum prazer.

Quantas vezes sou o “clown”, o bobo-da-corte condenado a produzir o riso neste picadeiro mudo.

Aqui, neste mundo sem o fulgor do real, os aplausos se darão ou não somente muito tempo depois. A sensação gozosa se dissipa com o passar do tempo.

E eu sou o senhor deste tempo, do choro e do riso. Triste tarefa esta: a de travestir o real!

Afagar e afogar-se na pretensa sensação do outro, daquele que pede socorro, daquele que grita e lamenta.

O muro das lamentações é a matéria de que se nutre o escritor. O tempo nos aplaca e nos redime.

E permanece, soando como um sino, a ignota dimensão humana.

– Do livro CONFESSIONÁRIO – Diálogos entre a Prosa e a Poesia, 2006 / 2007.

http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/429067