O probo
Na época em que ocorreram os fatos aqui relatados, ele ainda era o cabo Luís Carlos, mas já era uma espécie de lenda viva por uma qualidade que não devia espantar a ninguém: a probidade. O apito do Luís, sempre fiscalizando o trânsito, era inegociável. Sua cartilha era a lei, e não havia conversa... Por trás daquele homem negro, alto, fardado, pai de família, escondia-se, também, uma boa alma, que aplicava a lei a serviço da sociedade sem nenhuma tergiversação. Cabo Luís, ao multar, era educado: ouvia paciente as ponderações do contribuinte faltoso, mas apontava-lhe a legislação e costumava até, educativamente, dissertar sobre a função social das leis.
Na nossa Juiz de Fora dos anos setenta, ainda menos movimentada, iniciei minhas aulas de volante. Até que o exame oficial acontecesse, arriscava algumas viagens aos colégios e cursos preparatórios, desprovido da cobiçada habilitação. Certa feita, um amigo professor encorajou-me a aventura e ainda me deu a receita para livrar-me de multas, caso fosse flagrado sem a carteira. Era só falar do nosso curso e citar o diretor, visto que os guardas de trânsito – quase todos – estudaram ou estudavam conosco... Que alívio!
Mesmo assim, acautelei-me e só fiz o uso do fusquinha em situações extremas, como naquele dia em que me atrasara para uma prova de Filologia, do Mário Roberto. À época eu estudava na UFJF e dava muitas aulas pela cidade. Saí da garagem - com desenvoltura , acho eu – e ainda convidei um vizinho, o Ildemar, estudante de bioquímica, para dividirmos a viagem até o campus. Trajetória de uns trinta minutos... Conversávamos amenidades e íamos... Cheguei a comentar-lhe que me faltava a habilitação, mas ele, ironicamente, me disse que não precisava...
Na Avenida Independência, hoje Itamar Franco, é que fiquei conhecendo o cabo Luís Carlos. Quando o vi, já tive algum receio... Um guarda, apenas um guarda, procurei me acalmar. O sinal fechou. Parei e aguardei. Sinal aberto, pé na embreagem, primeira marcha e o fusca me decepciona: morre. Não, não culpemos o fusca. Quando não somos treinados para a burla, nos desconcertamos e erramos. Nem cheguei a tentar de novo. Incontinênti, o cabo aproximou-se, cumprimentou-me e, diante da falta de habilitação, ordenou que eu estacionasse no posto de gasolina. A custo e embaraçado, usei,então, aquela carta na manga: eu era professor, trabalhava no IAC, era amigo do professor Adelino, do professor José Aparecido. Lá estudavam muitos policiais... O cabo ficou muito surpreso da minha condição de mestre, que não dava um bom exemplo. Ainda me lembro perfeitamente daquele “Me admira o senhor...” e por aí ele foi com mais algumas palavras de reprovação. Aquele homem da lei mandou que eu estacionasse o carro (o José Aparecido o buscaria depois) e lavrou o auto de infração. Uma fortuna a dilapidar meus parcos recursos!
A ocorrência chegou aos ouvidos daquele meu conselheiro, que me animara a trafegar na ilegalidade. Fora um azar, segundo ele, para quem – e isso me surpreendeu – as ações do cabo Luís eram bem conhecidas.
Contou-me esse amigo que o cabo costumava atuar mesmo nos dias de folga, anotando placas de veículos que trafegavam em excesso de velocidade. Ao meu conselheiro escandalizava sobretudo aquele zelo extremo...
Num desses dias de folga, o cabo, que morava em bairro e esperava o ônibus, acabou por aceitar a carona de um vizinho rumo ao centro da cidade. Não eram amigos, apenas se cumprimentavam. Vizinho e policial seguiam viagem e a conversa fluía. A certa altura, o motorista – já com a intimidade que a solicitude proporciona – disse ao homem da lei que sua presença no veículo o deixava mais tranquilo, pois ele não tinha habilitação. Ato contínuo, o cabo, com a fineza que lhe era característica, disse ao prestimoso vizinho, que, infelizmente, eles não poderiam seguir viagem. Parou-se o carro e, mesmo à paisana, o cabo aplicou a lei. Situação idêntica à que vivi, o vizinho do probo policial também vivenciara... Por que não me contaram essas coisas antes?
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