PRELÚDIO PARA A VIDA
PRELÚDIO PARA A VIDA
Admilson Munis
Lá estava quase eu, digo quase eu, por saber que antes fui gametas em seres distantes para só depois me tornar um feto de cromossomos unificados. Detalhe, graças à animosidade da natureza, cromossomos bem divididos. Dessa vez, os pares vieram certinhos!!!! Ali fiquei esperando por um longo tempo. Lugar tão úmido, mas, quente e aconchegante. A beleza era sinistra, um maquinário intrigante onde cabos conectados em diversos seguimentos me injetavam substâncias enérgicas para a manutenção da vida. Muito sangue e movimento!!! Havia dentro de alguém uma vontade louca de que eu enxergasse bem de pressa o mundo lá fora.
Dentro de mim havia ansiedade, duvida e medo. Pois existia um tempo determinado para eu poder ver o mundo. Ali eu começava a aprender que existem coisas que não adianta querermos sua antecipação, pois elas foram feitas para acontecer no tempo certo. Eu precisava esperar. Sair antes daquele lugar seria um mistério indesejável. Certamente quem me abraçaria dando boas vindas seria uma criatura estranha. A quem todos esperam encontrar depois de decorridos quase uma centena de anos. Essa criatura é muito misteriosa, para conhecê-la, basta antes conhecer a vida. Ela não obedece a regras nem códigos, sua visita às vezes acontece em momento incerto.
Mas eu queria encontrar outras pessoas. Os sorrisos, as emoções e a alegria. Lá estava eu já inquieto quando ela me chamou. Sua voz forte e entusiasmada entrou irradiante nas entranhas onde eu habitava. Aquele circuito de órgãos, num gesto súbito de despedida parecia me dar o último abraço. Despedida estranha. Era como se ali naquele lugar eu não voltasse nunca mais. Percorri algumas estradas que me vieram na lembrança. Houve uma sensação incrível de que eu já havia passado por ali. Sabe, aquelas lembranças que remanescem hibernadas no inconsciente? Era bem parecida. Senti medo da claridade. Depois senti frio. Tive uma nova sensação de um primeiro mergulho. Até movimentei os braços e as pernas. Debalde, tentei me equilibrar em uma substância líquida que não existia.
Naquele emocionante momento percebi que aquele mergulho, embora fosse real, tinha um pouco de metáfora e sinestesia. Era um mergulho para a vida. A vida chegava com enorme energia. Trazia nas mãos um grande livro. Segredava em meus ouvidos todas as outras pessoas que faziam parte dela. Aprendi naquele momento que a vida é uma diversidade de outros substantivos abstratos, que sem eles a própria vida não teria sentido. A lista era imensa. Hesitei-me por um instante. Tentei fazer algumas escolhas por acreditar que muitos daqueles sentimentos eram inúteis. A vida me advertiu. Disse-me que ela era um corpo indivisível, formada por todos os outros sentimentos. Foi pela primeira vez que ela me apresentou a tristeza. Eu a senti com profundidade. Depois ela me apresentou o ódio, eu o vivenciei. Logo em seguida, fui fustigado pela dor. Veio o arrependimento de ter conhecido a vida. Mas, a própria natureza das coisas não me deixava retornar ao meu status quo ante.
A vida tomou pela primeira vez a iniciativa como um todo. Tentou me explicar que todos os sentimentos, bons ou ruins, são necessários. E que ela, a vida, era o sinônimo de minha própria existência. E que da mesma maneira que um corpo, naturalmente experimenta suas funções para manter o equilíbrio biológico, o sopro da vida é movimentado pelos sentimentos que trazem dor e alivio. Isso, em ciclos concomitantes. Depois dessa longa e belíssima explicação, tive o privilégio de conhecer a alegria. O entusiasmo veio logo em seguida. O orgulho apareceu de repente em todas suas dimensões.
Assim, dia após dia experimentei todos os sentimentos que a vida é capaz de nos trazer. Aprendi que realmente eles mantêm o necessário nível do equilíbrio. Os sentimentos da vida são verdadeiros poderes independentes, mas, harmônicos entre si. Aqui estou eu, amando a vida que tanto me experimentou. A vida que até hoje me traz sensações boas e ruins. Mas eu em nenhum momento vou me imiscuir da dádiva de viver. A vida só é vida se não eliminarmos a humildade do grande elenco dos sentimentos. Da mesma maneira que devemos aceitar com lealdade todos os demais componentes. Pois se a vida premiasse qualquer de nós apenas com a felicidade, o próprio ódio sentiria inveja. E alimentado pela mistura de sentimentos diversos o orgulho diminuiria a existência da vida. Consequentemente, a tristeza tomaria seu lugar.
O hoje é o agora. A vida segue sua marcha latente. Os pulsos pulsam e o sangue faz o seu ciclo em eletrizantes movimentos. Já se passaram tantos anos depois de sua chegada. Aqui ou ali estou eu. Fugindo sempre da visita do último substantivo abstrato. criatura que também faz parte da vida. Ela é sinistra, fria e calculista. Pode estar em qualquer esquina onde menos se espera. Pode vir logo após uma gargalhada. Lá estava eu quando a vida chegou. Aqui estou eu enquanto a vida está ao meu lado. Mas, ainda que a morte seja a única certeza, não me desperta nenhuma curiosidade em que lugar estarei quando ela chegar.