A PESCARIA DO PIRARARA
Assim que arremessado o conjunto afundou velozmente. Embalado pela correnteza que descia sobre o buliçoso rebojo, a piranha de prato, iscada pela boca, voou juntamente com a pesada chumbada esticando, pela força da água, a resistente linha que passara a transmitir, à vara, suas incessantes vibrações na profundeza. Agora cabia esperar.
Ainda chovia por lá. O Araguaia, frente à ilha do Bananal, de uma de suas barrrentas margens mal se avista a outra; as pontas dos sarãs, antes ribeirinhos, agora balançam festivas à flor d’água no meio do rio; a água transbordou às matas levando com ela os peixes, obrigando os pescadores a embrenhar pelos novos canais formados pela fabulosa enchente.
Navegando ontem, mata adentro, junto às grandes árvores tomadas pelos cipós arraia, no esplendor de seus viços, estes trepam às árvores fustigando a imaginação a sugerir mirabolantes imagens de portentosas entradas de catedrais em algumas delas; noutras, por sua vez, incitam assumirem aspectos de temidas figuras fantasmagóricas a se arrastarem com dificuldades. Em meio dessas, as poucas árvores ressequidas e disformes se apresentam tais a mãos esquálidas erguidas ao céu, em súplicas sinistras.
Havia de tudo, menos peixe.
Diria que, por caridade do rio, fisgavam-se mandubés, --- também conhecidos por palmito, peixe de carne especialmente saborosa --- que mal dava para o trato.
O local de hoje é apropriado aos pirararas. Ao lado do rebojo que desce, a água turva gira acumulando espuma ao meio a gravetos e folhas secas em acostado remanso. Radori, da etnia Carajá, é o piloteiro. Escolhera o local da grande curva do rio que, ao receber as águas de um afluente, forma extensa corrente produzindo o profundo rebojo que segue a perder de vista. Iscada, pois, a piranha, esperamos pelo grande peixe.
O pirarara é um bagrão de carne vermelha, cuja carapaça óssea na cabeça se alonga quase ao meio do corpo; seu couro é cinzento recortado lado a lado por extensa faixa branca que se estende até próximo ao vigoroso rabo vermelho. É dotado de força excepcional capaz de arrastar canoas consideráveis rio acima.
O tempo à beira do rio rasteja sonolento. Recolhida a linha, meia hora depois, sugeria eternidade. A piranha viera embranquiçada, inteiramente intocada.
--- Tá na hora de livrarmo-nos disso! Catinguinha aponta para a grande cabeça de barbado, --- assaz fedorenta --- que jazia no fundo da canoa. Era alternativa iscá-la.
--- Boa idéia! ... Vamos nos livrar dessa fedentina! Completou.
--- Vejamos o que dará! Providenciava Catinguinha iscando a tal cabeça do barbado.
O arremesso da nova isca alcançou perto de 25 metros. Da mesma forma anterior aquilo bateu na água e afundou pedindo linha. A carretilha após fora trancada, o alarme devidamente acionado e a vara acomodada no porta varas da canoa. Acomodado no assento Venâncio remexe no isopor tirando algo de lá.
--- Vai um gole? A latinha fora oferecida ao amigo.
Mal estourou o lacre da tampa o alarme soou estridente! Três corações pulsaram fortes ante o desenrolar chiado da fricção segurando o ímpeto do bruto; a linha cedia lentamente ante a afobação de Venâncio a se debater desequilibrado na embarcação. A fricção continuou a chiar agora apertada cumprindo o seu papel.
--- É o pirarara! --- Gritou Radori --- solta a canoa!... dá linha!...dá linha, senão arrebenta! Implorava a Venâncio.
Aos trambolhões a bordo, a vara prestes a voar da canoa fora apanhada e destravada a carretilha. A canoa solta seguia a corrente impulsionada pelo peixe em fuga.
--- Seguuura peão! ... Não deixa o bicho tomar a direção da margem! Gritava aos berros o exultante Catinguinha.
O peixe em sua luta tomara o meio do rio e desembestara. Alívio! Por ora se livravam de tê-lo entre a "garrancheira" da beirada.
Seguiam a reboque do peixe, mercê da fúria do valente pirarara. A ponta da vara emborcava à medida que a linha era recolhida, mas logo a fricção cedia e a carretilha destravava... e tome linha! Cinquenta metros, cem metros à frente, a fúria do gigante tentava desvencilhar-se do angustioso anzol.
Súbito, a linha afrouxou boiando sobre a água. O corre e corre do momento dera lugar a inesperada calmaria. Perceberam atentos, os três pescadores, que o astuto peixe mudara de rumo subindo ao encontro da canoa!
--- Recolha rápido! Advertiu Radori. ... Ele vem pra cima de nós!
A confusão durou pouco. Minuto seguinte a linha tomou o viés lateral do rio puxada pelo instinto do peixe em buscar proteção nas galhadas submersas, próximas da margem.
--- Segura o bicho! ... Liga o motor, Radori!... Traga ele de volta! ... Acelera! Acelera!
Bons pares de minutos se passam ante aquele cabo de guerra forçado entre a bravura do peixe indo contra a aceleração contrária do motor. Nada podia se esperar --- ante luta tão desigual --- a não ser a visão do bravo pirarara finalmente se render e ser arrastado contra sua vontade para o meio do rio, exangue de suas forças, minadas que foram pelo esforço da porfia.
A força do motor prevalece.
Contudo, em que pese o arrasto, os movimentos se sucedem rio abaixo, embora com menor intensidade: o peixe puxa, o pescador empunha; o peixe folga, o pescador puxa e recolhe, puxa e recolhe. Sucessivamente.
Finalmente ei-lo prancheado ao lado da canoa. Seguro pelos ferrões laterais, bufa nervoso sacudindo água em volta ao meio de um líquido grosso amarelado que ele asperge borrando por todo lado; demonstra fúria pela capatura.
--- ÍÍÍÍ! ... borrou no barco todo! Reclama Venâncio.
É um belo espécime pressupondo 20 a 25 quilos.
Rendidas as admirações, filmado e recomposto, tornaram-no ao rio.
Dia já era. Atingidos pelos primeiros pingos da chuva que se avizinhava, recolheram os petrechos e partiram. No horizonte, a natureza descortinava generosa visão: o sol poente aurificava o largo lençol d’água, e, acima, com vários entretons de cinza combinados ao alvíssimo branco dos cúmulos, mãos invisíveis ornamentaram sobre o azul celeste então recortado por incompleto arco-íris, um quadro de raro esplendor! Ao meio dele, ainda, solitárias estrelas despontavam. Via-se, lá, magnífico altar em honra de alguma divindade.
Tal momento merecia uma oração. Fizeram-na em silêncio pensando na volta. Afinal, Goiânia estava a 570 quilômetros.
Assim que arremessado o conjunto afundou velozmente. Embalado pela correnteza que descia sobre o buliçoso rebojo, a piranha de prato, iscada pela boca, voou juntamente com a pesada chumbada esticando, pela força da água, a resistente linha que passara a transmitir, à vara, suas incessantes vibrações na profundeza. Agora cabia esperar.
Ainda chovia por lá. O Araguaia, frente à ilha do Bananal, de uma de suas barrrentas margens mal se avista a outra; as pontas dos sarãs, antes ribeirinhos, agora balançam festivas à flor d’água no meio do rio; a água transbordou às matas levando com ela os peixes, obrigando os pescadores a embrenhar pelos novos canais formados pela fabulosa enchente.
Navegando ontem, mata adentro, junto às grandes árvores tomadas pelos cipós arraia, no esplendor de seus viços, estes trepam às árvores fustigando a imaginação a sugerir mirabolantes imagens de portentosas entradas de catedrais em algumas delas; noutras, por sua vez, incitam assumirem aspectos de temidas figuras fantasmagóricas a se arrastarem com dificuldades. Em meio dessas, as poucas árvores ressequidas e disformes se apresentam tais a mãos esquálidas erguidas ao céu, em súplicas sinistras.
Havia de tudo, menos peixe.
Diria que, por caridade do rio, fisgavam-se mandubés, --- também conhecidos por palmito, peixe de carne especialmente saborosa --- que mal dava para o trato.
O local de hoje é apropriado aos pirararas. Ao lado do rebojo que desce, a água turva gira acumulando espuma ao meio a gravetos e folhas secas em acostado remanso. Radori, da etnia Carajá, é o piloteiro. Escolhera o local da grande curva do rio que, ao receber as águas de um afluente, forma extensa corrente produzindo o profundo rebojo que segue a perder de vista. Iscada, pois, a piranha, esperamos pelo grande peixe.
O pirarara é um bagrão de carne vermelha, cuja carapaça óssea na cabeça se alonga quase ao meio do corpo; seu couro é cinzento recortado lado a lado por extensa faixa branca que se estende até próximo ao vigoroso rabo vermelho. É dotado de força excepcional capaz de arrastar canoas consideráveis rio acima.
O tempo à beira do rio rasteja sonolento. Recolhida a linha, meia hora depois, sugeria eternidade. A piranha viera embranquiçada, inteiramente intocada.
--- Tá na hora de livrarmo-nos disso! Catinguinha aponta para a grande cabeça de barbado, --- assaz fedorenta --- que jazia no fundo da canoa. Era alternativa iscá-la.
--- Boa idéia! ... Vamos nos livrar dessa fedentina! Completou.
--- Vejamos o que dará! Providenciava Catinguinha iscando a tal cabeça do barbado.
O arremesso da nova isca alcançou perto de 25 metros. Da mesma forma anterior aquilo bateu na água e afundou pedindo linha. A carretilha após fora trancada, o alarme devidamente acionado e a vara acomodada no porta varas da canoa. Acomodado no assento Venâncio remexe no isopor tirando algo de lá.
--- Vai um gole? A latinha fora oferecida ao amigo.
Mal estourou o lacre da tampa o alarme soou estridente! Três corações pulsaram fortes ante o desenrolar chiado da fricção segurando o ímpeto do bruto; a linha cedia lentamente ante a afobação de Venâncio a se debater desequilibrado na embarcação. A fricção continuou a chiar agora apertada cumprindo o seu papel.
--- É o pirarara! --- Gritou Radori --- solta a canoa!... dá linha!...dá linha, senão arrebenta! Implorava a Venâncio.
Aos trambolhões a bordo, a vara prestes a voar da canoa fora apanhada e destravada a carretilha. A canoa solta seguia a corrente impulsionada pelo peixe em fuga.
--- Seguuura peão! ... Não deixa o bicho tomar a direção da margem! Gritava aos berros o exultante Catinguinha.
O peixe em sua luta tomara o meio do rio e desembestara. Alívio! Por ora se livravam de tê-lo entre a "garrancheira" da beirada.
Seguiam a reboque do peixe, mercê da fúria do valente pirarara. A ponta da vara emborcava à medida que a linha era recolhida, mas logo a fricção cedia e a carretilha destravava... e tome linha! Cinquenta metros, cem metros à frente, a fúria do gigante tentava desvencilhar-se do angustioso anzol.
Súbito, a linha afrouxou boiando sobre a água. O corre e corre do momento dera lugar a inesperada calmaria. Perceberam atentos, os três pescadores, que o astuto peixe mudara de rumo subindo ao encontro da canoa!
--- Recolha rápido! Advertiu Radori. ... Ele vem pra cima de nós!
A confusão durou pouco. Minuto seguinte a linha tomou o viés lateral do rio puxada pelo instinto do peixe em buscar proteção nas galhadas submersas, próximas da margem.
--- Segura o bicho! ... Liga o motor, Radori!... Traga ele de volta! ... Acelera! Acelera!
Bons pares de minutos se passam ante aquele cabo de guerra forçado entre a bravura do peixe indo contra a aceleração contrária do motor. Nada podia se esperar --- ante luta tão desigual --- a não ser a visão do bravo pirarara finalmente se render e ser arrastado contra sua vontade para o meio do rio, exangue de suas forças, minadas que foram pelo esforço da porfia.
A força do motor prevalece.
Contudo, em que pese o arrasto, os movimentos se sucedem rio abaixo, embora com menor intensidade: o peixe puxa, o pescador empunha; o peixe folga, o pescador puxa e recolhe, puxa e recolhe. Sucessivamente.
Finalmente ei-lo prancheado ao lado da canoa. Seguro pelos ferrões laterais, bufa nervoso sacudindo água em volta ao meio de um líquido grosso amarelado que ele asperge borrando por todo lado; demonstra fúria pela capatura.
--- ÍÍÍÍ! ... borrou no barco todo! Reclama Venâncio.
É um belo espécime pressupondo 20 a 25 quilos.
Rendidas as admirações, filmado e recomposto, tornaram-no ao rio.
Dia já era. Atingidos pelos primeiros pingos da chuva que se avizinhava, recolheram os petrechos e partiram. No horizonte, a natureza descortinava generosa visão: o sol poente aurificava o largo lençol d’água, e, acima, com vários entretons de cinza combinados ao alvíssimo branco dos cúmulos, mãos invisíveis ornamentaram sobre o azul celeste então recortado por incompleto arco-íris, um quadro de raro esplendor! Ao meio dele, ainda, solitárias estrelas despontavam. Via-se, lá, magnífico altar em honra de alguma divindade.
Tal momento merecia uma oração. Fizeram-na em silêncio pensando na volta. Afinal, Goiânia estava a 570 quilômetros.