A parede do mundo é azulada até onde a vista alcança...
Se Fernão olha a gaivota  não vê o sol  de relembranças
que se põe 
atrás de suas asas  

 
Ele se destacara como um dos melhores cadetes de sua turma. Mas, naquele momento, teve medo de voar. Tinha conhecimentos técnicos de aeronave, navegação aérea, teoria de voo aerodinâmico e segurança. Fora preparado para tomar decisões acertadas em situação de emergência e naquela hora, não pôde, contudo, evitar que uma constipação o apanhasse subitamente.  Não sabia se era emoção por aproximar-se o momento de ter em mãos o seu brevê ou de estar viajando com Vannini. Calma, Fernão, calma! — dizia ele para sua alma: “Em situações de emergência é preciso ter calma. É preciso fazer tudo que tem que ser feito”. E dirigiu-se ao toalete.
No trajeto, deparou-se com uma pessoa que lhe pareceu conhecida...
— André, é você?
— Sou André Albuquerque.
— Não te lembras de mim? Fomos colegas no Joaquim Nabuco!
— Gaivota! Não acredito? Quanto tempo!...Não te importas mais com este apelido, não é mesmo?
— Claro que não! E até tenho muita saudade do colegial. Recordo-me de estar pronto para te dar um soco, quando,suavemente, me deste uma tapinha nas costas, dizendo: “Brincadeirinha, amigo!”
— Lembro perfeitamente, disse André.
Os dois riram, e, entre o sorriso e o medo, uma turbulência cortou o diálogo. Alguém gritou:
—Vamos estourar!
— Coisa passageira — disse outro.
Desfeito o susto, Nilmário permanecia segurando a mão de Paola. Com cuidado e maciez na voz a freira puxou lentamente a mão e sintetizou.
 — A turbulência passou! Não tenho permissão ainda para tirar o hábito. 
Ela sempre foi de poucas palavras e interrogações. Sonhou com um curso superior e ainda jovem, graduou-se em Direito e, por  causa da faculdade, retardou sua missão como consagrada de Nossa Senhora de Namur. Inicialmente, Irmã Paola trabalhou em missões domésticas. Em Goiás, conheceu remanescentes Jês que habitavam o baixo Araguaia, e o Tocantins. Aquela  comunidade indígena chorava as baixas em combates com o homem branco, em quantidade tanta, que não tinham potes suficientes para depositarem seus mortos. Os jês  pranteavam a morte do cacique Cuiarana, morto durante a construção da Transbrasiliana. E choravam uma Apinajé desaparecida quando tinha  17  anos... Naquele mesmo ano, a consagrada  Paola decidiu dar nova direção à sua linha de trabalhado, afastou-se da assessoria ao Conflito dos Guajajaras e desligou-se da Escola Brasil Grande, para assumir  missão evangelizadora em países da África. Ali, curou a ferida alheia e  com a alma na mão guardou as suas dores na gaveta. Por qual espírito estaria sendo movida agora? Por que lhe vinham à mente projetos de casar e ter muitos filhos? “Deixe-se conduzir pelo Espírito”, dizia, recordando-se das palavras do apóstolo Paulo. Mas, também está escrito: “Por isso o homem deixa o seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher...”  Ela poderia servir a Deus como leiga, casar-se e ter filhos. Viver uma vida santa. Compreendera que “a vocação para a vida eterna é sobrenatural”. Alcança casados, viúvos, solteiros, velhos, jovens e crianças. Casar com um jogador do Saint-Etienne, um brasileiro que conhecera na sala de embarque do aeroporto no Rio de Janeiro, e muitos anos mais novo que ela?Eis a grande questão! A idéia pareceu absurda, mesmo porque, embora Nilmário tenha insinuado, ela não recebeu sequer um pedido de namoro. Nem poderia! Consagrara sua vida a Deus com votos de pobreza e castidade.
 Era cedo para pensar em morar na França. Seu projeto para o futuro seria voltar às raízes, fixar residência na Itália e escrever livros, muitos livros. O outro passageiro consultou o relógio. Estavam voando há  cinquenta minutos sem darem uma palavra, até que um deles irrompeu o silêncio.
— Conheço o senhor de algum lugar — disse Carrero, dirigindo-se a Gilson Chagas.
— Talvez sim! Fui bancário e levava vida cigana. Precisava estar mudando de uma agência para outra, com o objetivo de fazer carreira no Banco. Trabalhei em Picos, Fortaleza, no Rio de Janeiro, em Brasília e em várias cidades de diversos estados. Naveguei por este Brasil urbano e caboclo, à procura do “caminho das índias” e mesmo aposentado, nunca parei de ticar as partidas dobradas  nas curvas do meu caminho. Moro em Brasília. Não sei até quando a Disney Brasileira me suportará.
—Pelo tipo de prosa, o amigo também é escritor! Muitos bancários, quando se aposentam, tomam o caminho das Letras. Vais ao encontro no Salon Du Livre?— Perguntou Carrero.
— Sim! Escrevi “A Ferro e Fogo” e um livro técnico em 2005, intitulado Contabilidade Geral Simplificada.  O último foi o romance “Música para Pensar”, lançado este ano. Produzi também outras obras na juventude que, hoje renego, e seria capaz de escrever nelas:incorrigível. Só o fogo!” Sou um professor que escreve. Nisto também me assemelho a Afrânio Peixoto.
— Não conheço teus livros! Li alguma coisa em sites literários. Não acha perigoso colocar a própria fotografia na Internet?
— Talvez sim, talvez não! Começamos a morrer a partir dos primeiros segundos de vida.
— É verdade! Muitos já disseram isto com outras palavras.
— Sim, já disseram. Muitos já disseram: “Cada minuto vivido a mais é um minuto de vida a menos”.
— Os sites literários estão repletos de velhos e novos talentos. Li um artigo de Francisco Miguel sobre PROSOPAGNOSIA. Que doença estranha! Não reconhecer o rosto das pessoas?... “E aí começava meu martírio” — diz Miguel.
—É... o Chico é mesmo estranho no ser e no fazer. Foi meu grande incentivador na direção das Letras.
— Foi? Não incentiva mais ou já morreu?
— Cada minuto vivido a mais é um minuto de vida a menos. Ele já tem 76 janeiros nos couros. Rogo a Deus que eu possa chegar a essa idade e o Chico ultrapasse em muitos anos o marco até agora alcançado.
Somos pedras que se consomem...  Diz Carrero — Meu livro, isso aqui, isso aqui é meu mundo, meu universo. Isso aqui é minha maravilha!  Eu gosto tanto disso aqui!  É como namorar. Tem dia que me sento só pra namorar! Olhar pra livro...
E trocaram gentilezas oferecendo um ao outro os últimos títulos que publicaram. Fernão olhou de soslaio. Lia muito, mas nunca pensara em escrever livros. Poesia nunca fez. Aventurava-se em  fazer rimas.   Aborrecia-se com os colegas que zombavam de seu nome: “Fernão Capelo tem pena de gaivota no cabelo.” As afrontas, embora ingênuas, feriam sua autoestima, mas, apesar dessas lembranças, sentia saudade dos tempos de colégio no Joaquim Nabuco.  A galhofa que lhe faziam do  nome, deixou marcas que permaneceram na vida adulta. Ele só se apresenta como Fernão ou como Noronha. Nunca Fernão de Noronha  nem Noronha Capelo, para evitar associação ao pássaro de Bach. Perdera, no entanto, o apelido quando voltou com quinze anos para o Rio de Janeiro.
Inquieto, Fernão acionou o serviço de bordo. A comissária aproximou-se:
— Pois não, deseja alguma coisa, senhor?
— Estamos voando baixo, disse ele.
— O Senhor está enganado! Estamos em nível de cruzeiro, a trinta e seis mil pés.
— Vejo o azul muito próximo.
— Sim, o céu é lindo porque é azul da cor do mar. Fique tranquilo, o comandante Hemor é muito experiente. Qualquer dúvida pode chamar-me novamente.
Aproveitando o clarão do relâmpago, Fernão olhou através da janela, captou a imagem de fora e reconstruiu a frase da aeromoça: “O céu é lindo porque é azul.” Refez várias vezes... “O céu é lindo porque é azul da cor do mar”. 
— É isso, o mar é azul da cor do céu. Vejo o mar debaixo de meus pés.