BICHOS FERAS
Quando tenho de lecionar Filosofia e Ética ou Leitura e Produção de Textos, informo aos meus alunos sobre o criacionismo e o evolucionismo com dois intuitos: ampliar suas visões acerca do fenômeno da teogonia em diferentes partes do mundo e conhecer as teorias sobre o desenvolvimento da linguagem humana. Não discuto o criacionismo, pois entendo que isso é competência da igreja, mas creio que é dever da escola apresentar aquilo que a humanidade desenvolveu e compilou cientificamente. Com essa crença, nessas aulas, estrategicamente, costumo projetar dois filminhos capturados no Youtube: “A evolução da espécie humana” e “O Homo Ergaster”.
O primeiro é uma produção da BBC, em que o apresentador mostra a evolução dos seres vivos. Nele, as ilustrações mostram que há bilhões de anos, a atmosfera de nosso planeta era bastante diferente da atual, sendo rica apenas em hidrogênio, amônia, metano e água. Nessa “sopa primordial” havia alguns microorganismos, que pereceram ou evoluíram, adaptando-se ou não às alterações climáticas ocorridas ao longo dos milênios. Dentre todos os seres que sobreviveram estão aqueles que se tornaram bípedes: nós.
Ao assistir ao segundo documentário, o aluno percebe que antes de o homem inventar ou descobrir a pedra lascada e o fogo, e com eles poder cortar alimentos ou cozê-los, ele teve de se alimentar dos restos deixados pelas feras, e só teria se tornado “inteligente” a partir da ingestão de ácidos graxos. Então, com “telencéfalos altamente desenvolvidos, além de polegares opositores e livres” (como vemos no documentário “Ilha das Flores”), o homem criou ferramentas capazes de resolver ou de causar problemas, como as armas, por exemplo.
Na verdade, o que eu mais pretendo com ambas as projeções é que meus alunos aprendam que, do ponto de vista do evolucionismo, nós já fomos “amebas mongoloides”, já fomos “bestas feras”, e que embora sejamos seres bípedes, não significa que somos humanos. Creio que foi em estágios bem primitivos que o homem desenvolveu o que eu chamo de VAV: vícios, ambições e vaidades. Por causa desses três coisas, ele ainda é capaz de matar, roubar, sacanear, humilhar e subjugar o outro, voltando aos seus instintos primitivos e irracionais.
Creio que a coisa começou a melhorar um pouquinho, quando o homem, por não conseguir explicações para os fenômenos da natureza, criou as divindades e o temor a elas. Explico: o medo de contrariar os deuses e de ser castigado por eles consegue, até hoje, conter a fera que “dorme” dentro de cada homem. Além disso, como suponho que viver em bandos de hominídeos devia causar muita confusão, creio que os mais velhos ou os mais fortes devem ter estabelecido normas comportamentais, criando, regras de boa convivência. Quem sabe não foi nessa época que surgiram as religiões, a educação, as igrejas e as escolas, tentando tornar humano o sujeito que nasceu fera?
Os empecilhos para os alcances dos objetivos da igreja e da escola são muitos: o ateísmo desumano, o mau exemplo das autoridades religiosas e/ou políticas, a inconsequência de quem explora os mais fracos e vive de ostentações, a desvalorização dos educadores, as desculpas esfarrapadas de que não há dinheiro suficiente nem para educar e nem para ressocializar, embora haja muito para investimentos bélicos ou simplesmente para divertir o povo.
Pois bem, no século XXI, os “bichos feras”, espalhados em todos os níveis da pirâmide social, movidos pela insanidade mental, pelos VAVs ou pela falta de amor, continuam tocando terror no mundo. Alguns consideram normal roubar dinheiro público, economizar com remédios para quimioterapia, adicionar água impura e ureia ao leite, abandonar os filhos em lixeiras.... Outros são incapazes de se colocar no lugar do próximo (muito menos do "distante"), por isso não viram problema algum ao ceifar as vidas de Chico Mendes, do casal Richthofen, do garotinho João Hélio, de Victor Hugo Deppman (morto mesmo após entregar o seu celular para o ladrão), da dentista Cinthya Magaly Moutinho de Souza, e de tantos outros que, hoje, habitam apenas nas feridas incuráveis, nos peitos dos seus familiares.
Ao assistir a tantas notícias de violência, há quem banalize ou creia que a desgraça só acontece longe da gente. Para nossa infelicidade, quem pensa assim está errado: os “bestas feras” estão também em Linhares. Um deles, na tarde de 07 de maio de 2013, movido por “VAV” ou não, desconsiderou que nosso amigo Agnaldo Lopes da Rocha tinha o direito de viver feliz com seus familiares, amigos, funcionários... até o dia em que Deus quisesse.
Por ironia do destino, sua esposa, Isaura Pandolfi, na função de Presidente do CDL- Clube Diretor Lojista de Linhares, preocupada com questões de segurança da população no comércio, abordou esse assunto diversas vezes nas reuniões de Câmara Setorial do Centro, Comitê de Segurança, de 2012, e apenas neste ano o assunto já esteve nas pautas de 19/02/2013, 20/02/2013, 05/03/2013, 18/03/2013, 19/03/2013, 04/04/2013 e 16/04/2013.
Creio que os “bestas feras” da atualidade não são aberrações da natureza e nem sempre são doentes mentais. Eles são as frustrações das autoridades religiosas e dos educadores, pois competem a ambos, por meio de diferentes recursos, instruir, educar e ensinar (por meio de exemplos), que apenas o amor ao próximo nos transforma em seres humanos.
Reconheçamos, porém, que educação é tarefa árdua. Às vezes, o máximo que conseguimos é que o sujeito não volte a ser “bicho fera”, mas fazê-lo internalizar e valorizar a honestidade, o respeito, a gentileza, a cortesia, a amizade, a responsabilidade, o trabalho, a perseverança, o esforço, a decência... não é fácil. Tive esses pensamentos em relação aos motoristas, que não me permitiram inserir meu carro na fila do féretro, e, depois, quando ouvi um sujeito falando alto, em resposta à chamada brega de seu celular, exatamente na hora que a família se despedia do Agnaldo.
O que fazer com os “bichos feras”, com os “grossos” e os “toscos”, que envelheceram e não conseguiram se educar? Tratá-los da forma como nos tratam é tornarmo-nos como eles. Talvez, tudo o que possamos fazer é ir para as ruas, protestar e exigir que o dinheiro do “circo para o povão” vá integral e efetivamente para a saúde, segurança e educação.