Conto publicado no jornal “O Norte”, Montes Claros-MG, dia 06 de novembro de 2009.

 
Comandando o lado "B"


 
Já estava entediado com toda a normalidade padronizada à qual estava submetido. As regras básicas comportamentais, espirituais, sociais, musicais, politicais que circundam a existência meridiana deste miserável ser são penalidades capitais. Tudo deve ser metricamente seguido tal compasso de uma música fúnebre em tonalidade menor, sem direito a nenhum da capo. Os ritornelos são meros seres mentais que na prática jamais são vislumbrados. Seguir sempre em linha retamente o lado esquerdo. Mas na melodia das flautas, há sempre trinados e mordentes que fazem a diferença.

Cansado das linhas traçadas, ônibus à espera e destino praia nordestina. Sentado em uma poltrona que dava para a janela, canonicamente comportado, olhava para as paisagens móveis do vidro. Ao lado ninguém. Nenhuma alma despenada acompanhando a solidão tácita. Movimentos do transporte, cérebro em constantes pensamentos, desejo de mudança radical ou, pelo menos, astral. Plano superior de uma vida inferiorizada por marteladas dadas na cabeça já cansada e fadigada. Cantos e batuques no fundo do veículo, farofa voando por causa da aposta: conversa com farinha na boca. Não foi preciso conversar nem se entreter com ser algum, o costume de só dialogar com o espírito caduco saciou toda a sede durante a viagem.

Destino almejado, pés no chão, ou melhor, na areia. Ao avistar o mar com sua exuberância tão conhecida e ainda inspiradora, apesar de muito já ter sido dito, veio a lembrança poética de Ruiz: “olhar para o mar/ não é mesmo que velejar/ mas dá pra viajar”.

Incômodos são os ruídos musicais não condizentes com as estéticas seguidas por uma vida de maestria. Saía de casa para tentar controlar o lado racional da existência, mas a pressão do meio acendia a chama da racionalidade e da correção dos regimes comportamentais. Uivo forte de desespero e lançamento na água, mergulho, engasgos, luta feroz com a maré. Incrível sal e tão poderosa é sua capacidade salina de temperar mentes e pulmões. Absorvido o ar carregado de mormaço, a razão louca do despojar assume com autoridade o corpo. Com uma coragem nunca vista, estava lá no meio do grupo, dançando e cantado músicas que não fariam jamais parte do repertório. Soltava gritos de alegria, olhava para a bem querência feminina com lascívia. O corpo se mexia descompassadamente sem vergonha seguindo apenas a espontaneidade. ()

A voz que segurava o microfone do alto de um palco anuncia uma disputa. Haveria dois lados dançantes, o “A” e o “B”. No primeiro, uma jovem garota com todas as etiquetas femininas possíveis e belezas capazes de atiçar qualquer poeta, romancista, contista, cronista, estilista. E para comandar o lado “B” a voz chama: “Você aí, sim, você negão, venha cá!”. Sem calcular o tempo, já estava em cima do palco liberto da timidez e dançando, não como a mulata ao lado, mas como um bom negão! Algumas pessoas que viram esta exótica figura comandando o lado “B” e que, por azar, a conheciam, perguntaram-se: “e os princípios?”.

Acabada a música e toda a agitação folia, só restou o sentimento de culpa, por ter violado as regras cultivadas há tempos. Ali na praia ainda, olhando para o mar, a mão tocou de leve o peito. Uma humana existência invadiu todo o ser e lágrimas correram pelos olhos até atingir os lábios, as quais foram bebidas como um antídoto. Ao lado “A”, marcadamente belo, foi dada a emoção. E ao lado “B”, marcadamente sério, foi dada a razão. E justamente este lado que deve ser comandado, sempre. Deixe o rebolado harmônico da mulata dançar. E quando a racionalidade insistir em imperar, dê a ela a graça do ser humano. Por que como disse Antônio Alçada Baptista: “Se eu fosse objeto, eu seria objetivo. Como sou sujeito, sou subjetivo”. D.C. al Coda.