Pois é!

Um dia desses encontrei um amigo de trabalho que não via há anos. Isto é sinal de que a vida está passando como um foguete destemperado: quando abrimos os olhos... já foi.

Enquanto falávamos de nós mesmos, a coisa seguia dentro dos parâmetros da normalidade, mas quando passamos a lembrar dos “velhos” e queridos amigos, me deu um certo aperto nos olhos. Confesso que não foi nada animador, muito pelo contrário. Foi até meio constrangedor. A sensação que tive foi de que o tempo passou apenas para os outros, e que, para nós, esse distanciamento fora visto como um acontecimento casual ou meramente um desleixo da natureza. Algo como se eu olhasse para o espelho e me visse imutável, como se não houvesse registrado a minha caminhada pelas estradas por onde andei todo aquele tempo.

O primeiro dos amigos que me lembrei foi o querido João. João era o nosso datilógrafo, um sujeito ímpar. Me lembro que ele passava o ano todo juntando dinheiro para comprar a fantasia da escola de samba Beija-flor, era um entusiasmo de dar gosto até em quem não gostava de carnaval. Ele cantava todos os enredos da escola sem titubear, era como se aquilo lhe matasse a fome que o acompanhava há dias. Batucava nos processos, nas mesas e até nos armários. Dizia que todos aqueles objetos caquéticos eram bons de som e que, quando entrava na avenida, o mundo era todo seu: chovesse ou fizesse sol. Quantas vezes o vi deixar de comer para mandar o dinheiro da mensalidade.

__ O João morreu.

Disse em voz embargada.

__ Jura?

__ Sim, a última vez que o vi foi em um hospital, estava entubado. A expressão do seu rosto era a mesma de quando o vi pela primeira vez.

__ E o Drago, aquele gigante gaúcho?

__ Não sabe?!

__ Não me diga que também ele morreu.

__ Digo sim, enfarto fulminante. Falaram que ele havia morrido de olhos bem abertos.

__ Putz! Não sei se você se lembra do dia em que fomos pescar no rio Paranã, lá pelas bandas de Formosa. O nosso carro era um FIAT 147. O danado caiu em um buraco e nada de sair, quanto mais acelerávamos mais ele afundava. Até que o Drago disse: “ninguém precisa descer, pode deixar que eu vou dar um jeito nisso”.

Foi quando arregaçou as mangas da camisa, agarrou o para-choque dianteiro do veículo e de um solavanco, jogou o carro para fora do buraco.

__ Esse era o Drago!!! Pescador pra mais de metro e meio.

__ E a Adalgisa?

__ Aquela gostosa do último andar?

__ Você não sabe?!

__ Não, não sei.

__ Nem te conto, virou mulher de vida fácil. Está pior do que crachá de assessorista.

__ Não acredito! Tudo isto?

__ Pode acreditar, está de dar pena.

__ É meu amigo, já está ficando tarde demais, é melhor irmos dormir!

__ Nobre e querido amigo! Não sei como ainda consigo reclamar da sorte: tenho saúde pra dar e vender, tenho uma mulher que é um encanto. De tão encantadora que é, ainda me deu a flor mais-que-perfeita: Maria Clara... nem sei se mereço tanto!

__ Ah, vamos deixar o resto desta prosa para outro dia pois, agora, tenho que dar colo para uma Estrela dormir... ela dorme como um anjo e ainda diz que sou lindo.

Naquela noite não consegui pegar no sono. Aqueles rostos, outrora tão jovens, me pareciam estarem vivos, bem ali à minha frente, quase ao alcance das mãos. Se chorei, não me recordo: talvez eu tenha soluçado baixinho para que minha mulher não me ouvisse.

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 08/05/2013
Reeditado em 03/10/2017
Código do texto: T4280230
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