"Faz de Conta"
Quando era criança brincar de faz de conta era sempre a melhor brincadeira. Naquela hora, eu e meus amigos éramos tudo o que quiséssemos ser, desde de reis e rainhas, guerreiros de collant colorido batendo em monstros esquisitos, ninjas e samurais, os melhores atiradores, os melhores jogadores, os melhores motoristas e espadachins. Numa dessa, brincando de faz de conta ser índio, vi meu primo acertar uma flecha de palito de churrasco no meio da testa de sua irmã, e a flecha ficar lá, fixa, com o sangue escorrendo pelo rosto minha prima que chorava e gritava, enquanto nós, em pânico não sabíamos se acudíamos a vítima, elogiávamos o primo por haver acertado no meio, bem certinho, ou ríamos do trágico ocorrido.
Hoje somos todos adultos, mas a brincadeira de faz de conta continua sendo muito popular entre nós. Vivemos nossas vidas fazendo de conta que somos responsáveis, que pagamos todas as contas, que somos amigos, que sentimos falta, que amamos, que somos felizes, que fizemos as melhores escolhas no emprego, nos relacionamentos e estudos. Fazemos de conta que não nos arrependemos, e é incrível como acreditamos e reforçamos o nosso faz de conta. Se a gente não acreditar, quem vai? O legal é quando encontramos um com os outros, nos abraçamos, beijamos, puxamos o melhor sorriso, afirmamos que está tudo bem, que a vida está ótima, que é bom o reencontro e o concluímos sempre com um "vamos marcar algo?" O algo que não queremos marcar, mas fazemos de conta que queremos nos ver de novo.
Algumas vezes me notei no exercício dessa brincadeira, fazia-a involuntariamente, aliás, desde criança praticando, como não iria tornar-me uma fera no assunto? Ao encontrar-me com amigos, parentes, conhecidos, usava sempre o mesmo faz de conta: tudo bem, tudo ótimo com os estudos, trabalhos, relacionamentos, família. Tudo legal. Sorrisos grandes e brilhantes dignos de comerciais de creme dental, abraços mornos e rápidos, tapinha nas costas, e, à despedida, o fim do faz de conta seguido pelo brotar da verdade, quando todos começamos a debulhar a nossa entediante realidade.
Noutro dia, encontrei uma pessoa que trabalhou comigo um tempo. Ela não gostava de mim e eu não me importava com ela. Eu estava num ônibus, ela prestes a entrar, eu não estava afim de brincar de faz de conta. Fechei os olhos e atuei um sono de uma trabalhadora cansada, mas, a infeliz gosta tanto da brincadeira que se aproximou e me acordou, sorrindo com gritinhos de surpresa, e eu, claro, puxei uma atuação que valia um Oscar: com o mais belo sorriso, fingi espanto ao vê-la, falei algumas mentiras e desci do ônibus me sentindo péssima. A brincadeira começou a me incomodar. Não era mais para mim.
Brincava também em meus empregos: como preciso de dinheiro, o meu faz de conta era de um profissional capaz de tudo, versátil, multifuncional, que topava qualquer parada, que tirava leite de pedra. Comecei, contudo, a notar que estava me dando mal, porque trabalhava além da função enquanto a empresa fazia de conta que eu era a melhor, prometendo-me mais caso fizesse mais. De repente, me vi trabalhando horrores, chegando cedo, saindo tarde, enquanto as promessas permaneciam no faz de conta. Aborreci-me de verdade, e hoje entendo que realmente devo trabalhar com algo que gosto e apenas pra mim. Parei de fazer de fazer de conta que sou capaz de tudo para uma empresa que faz de conta que valoriza e remunera bem seus funcionários.
Lidei com o faz de conta em alguns relacionamentos também: caras legais entravam na minha vida com beijos quentes e palavras carinhosas, então, eu que sempre fazia de conta me envolver, havia decidido que era hora de parar de brincadeira e agir com seriedade, abrir meu coração e me jogar de cabeça. Os caras, no entanto, tão acostumados com a brincadeira, continuaram com seus joguinhos de faz de conta que é sério e, no final eu me dei mal. Namorei, de verdade, caras que viviam de mentiras. Foi muito chato e fiquei um tempo cambaleando na dúvida entre viver no faz de conta que não me machucaram e a verdade da mágoa, da ferida. Foi esse o ponto inicial para o desabar do faz de conta em minha vida. Doeu demais e sofri de verdade, mas, não me fiz de coitada e tampouco implorei compaixão dos outros. Parei também de fazer de conta que sou uma vítima.
Parei de fazer de conta que me importo, parei de fazer de conta que gosto, parei de fazer de conta que não sei, que não doeu, que não percebo quem são os falsos amigos. Parei de fazer de conta e acho que talvez o meu futuro seja de isolamento, uma vez que, quando não se aceitam as regras da brincadeira, logo vem a exclusão. Ainda assim, passei a desejar a verdade nos relacionamentos, na vida, nos sentimentos, e estou começando a entender porque sempre gostei das pessoas que são sinceras. Decidi fazer minha parte e me desfaço de pesos mortos. Não é legal ser adulta e ficar perdendo tempo com brincadeiras infantis.