CRIAÇÃO DE GADO
(*) Edimar Luz
A criação de gado, assim como a agricultura, era antigamente uma atividade fundamental aqui em nossa região, aqui em nosso lugar. Bem sabemos que a pecuária foi de extrema importância para a ocupação do interior do Brasil, assim, a prática da agricultura e da pecuária também fazia parte do nosso cotidiano.
Lembro-me de que durante todos os anos, nas manhãs de Sexta-Feira Santa, ou Sexta-Feira da Paixão de Cristo, o leite mungido/ordenhado era todo distribuído gratuitamente entre a população mais carente dos arredores e outras localidades, que de garrafas e vasilhas na mão, percorria o bairro, aglomerando-se desde bem antes do alvorecer, ou romper da aurora, em frente aos currais ou vacarias, à espera do precioso produto, enquanto era feita a ordenha. Eram mulheres, crianças, velhos... Todos eram atendidos, recebendo, então, cada um deles, sua porção de leite das nossas vacas. Durante muitos anos, pude observar essa cena, aqui em casa, no meu bairro de características então rurais, pois o meu pai era agropecuarista, e diariamente acordava bem cedo para tirar o leite das vacas; a ordenha começava quase sempre às 4 horas da madrugada, estendendo-se por vezes até ao amanhecer. Em determinados períodos do inverno, era possível sentir o cheiro característico do esterco bovino no curral encharcado. Nosso curral continha muitas vacas leiteiras em lactação, ainda me lembro. Era uma fartura de leite, coalhada e até requeijão, um certo tipo de queijo de preparação caseira e bastante apreciado, por seu sabor agradável; assim como também eram abundantes os nossos produtos agrícolas, como feijão, milho, arroz, banana, melancia, alho, abóboras e outros que também eram cultivados. Ah, como era bom! Na época de inverno a ordenha era feita também no horário vespertino, e os bezerros que somente durante a noite ficavam separados das mães, em seus currais, nesse período ficavam separados delas o dia inteiro, em outras roças de pasto, exceto no momento da ordenha. Tínhamos também grandes e excelentes juntas de bois que eram empregadas nas atividades rurais, como puxar carros-de-bois, arar terra, arrasar e planear o terreno arenoso do rio Guaribas nas vazantes e outras. Tempos depois, utilizava-se tratores.
É interessante notar que além dos pedintes de leite mencionados acima, havia também os pedintes de auxílio, esmola ou espórtula, que eram uma constante, e vinham de longe, mendigar de porta em porta, o ano inteiro, pelas casas do nosso bairro. Hospedavam-se nas proximidades do centro da cidade, dirigindo-se ao nosso bairro apenas para pedir esmolas. Muitos desses mendigos que aqui vinham esmolar eram oriundos de regiões bem distantes, até mesmo de outros estados do Nordeste.
Vale lembrar que o capim cultivado, especialmente capim elefante, para balancear a ração do gado, principalmente na época da estiagem, era moído em nossas máquinas forrageiras; a do meu pai ficava instalada/situada no oitão na nossa casa grande, para o lado do nascente, ao lado do curral, numa casinha agregada construída única e exclusivamente para alojar a máquina. Em alguns casos, colocava-se para o gado, o capim até mesmo sem ser triturado na forrageira.
No gado do meu pai, marcava-se o número 3 sob a sigla JE, numa referência a ordem cronológica de seu nascimento, ou seja, meu pai é o terceiro filho do meu avo. Seus irmãos (meus tios) por sua vez também marcavam as reses com o número correspondente à ordem de nascimento, sob a sigla JE.
Na alimentação dos bovinos, especialmente das vacas em lactação, era empregada também, resíduo de caroço/semente de algodão, o qual era adquirido mediante compra nos armazéns e nas usinas de beneficiamento desse produto agrícola. Como disse acima, era bastante cultivado também capim elefante, que era empregado na alimentação de todo o gado.
Cabe ainda destacar que era comum se observar também, o gado nas gramíneas e no capinzal na época das invernadas ou invernos mais rigorosos, quando as nossas roças e campos se transformavam milagrosamente em excelentes pastagens naturais. O mugido dos bois era uma constante. O chamado “gado solteiro”, ou seja, vacas sem bezerros, garrotes, novilhas, novilhos, marruás, eram levados para as nossas chapadas, onde permanecia durante toda a estação chuvosa. Ainda me lembro daquelas boiadas maravilhosas. No momento em que se preparava o gado para ser levado à relativamente distante chapada, em algumas das reses mais bravas colocava-se uma careta de couro; em outras era colocado um barulhento chocalho de metal pendurado no pescoço, que saía a tilintar pelos caminhos rumo às nossas chapadas, onde a relva e a rama já se apresentavam favoráveis à prática da pecuária extensiva naquele período das chuvas do ano. É importante ressaltar também que todos os dias de manhã bem cedo, levávamos as vacas, os bezerros e o touro para as nossas roças de pasto aqui da localidade e adjacências, indo buscá-los ao cair da tarde, arrebanhando-os de volta ao curral.
Em última instância, convém lembrar aqui que havia também durante certo tempo, criação de gado do meu pai, também nas chapadas do Atalho, povoado do município de São José do Piauí, onde ficava sob os cuidados de um primo seu que morava lá, e seu vaqueiro, mediante contrato de partilha da produção, reprodução.
Ob. Do meu livro Memórias do Tempo.
(*) Edimar Luz é escritor, cronista, poeta, articulista, compositor, memorialista, professor e sociólogo, formado em Recife – PE.
Picos-PI, dezembro de 2003.