Mendigo da minha terra
Eu não sei bem a razão, mas a verdade é que volta e meia aparece um mendigo nas minhas crônicas. Talvez seja porque um mendigo traz desconforto, e eu não quero outra coisa com aquilo que escrevo. Ainda não consegui chegar ao estágio da indiferença. Volta e meia encontro aqui em Brasília, na hora do almoço, alguém deitado na calçada. Não no cantinho da calçada, mas jogado no meio mesmo. Não é possível afirmar se está dormindo ou se está morto. Presume-se que esteja dormindo – eu pelo menos torço por isso. Fico pensando se estivesse morto. Ali estaríamos nós, caminhando apressados, e talvez até reparássemos no corpo estendido, mas agiríamos com naturalidade e seguiríamos em frente. E ele ficaria lá, e alguém só iria se preocupar em ver o que havia acontecido quando começasse a cheirar mal.
Não sei quando foi que passamos a ter plena convicção de que nada que acontece a um morador de rua nos diz respeito. Imagine, por que dar dinheiro para alguém que não trabalhou por ele? Ele vai usar pra beber, o vagabundo. E também tem o seguinte: o que vai resolver eu dar uma esmola? O problema é muito maior, uma andorinha só não faz verão, é responsabilidade do governo, e além do mais esse dinheirinho aí vai me fazer falta também. Há sempre motivos muitos bem justificados para que ninguém precise ser o bom samaritano.
Imaginem vocês que na semana passada eu estava indo almoçar. Faço isso todos os dias. Mais: eu preciso fazer isso todos os dias. Acredito que eu não seja o único. E vejam que felicidade: eu tenho dinheiro para fazer isso todos os dias. Pois bem. Eu estava indo almoçar e de repente um sujeito relativamente jovem, loiro, baixo, meio sujo e mal vestido, se aproxima e começa a falar comigo. Tenho uma reação intermediária: tento dar atenção, mas não deixo de caminhar. Aí aconteceu o extraordinário. O sujeito, sabe-se lá por que, dizia que vinha do Paraná, que tinha nascido em Curitiba, e pergunta se por acaso eu não conhecia Curitiba.
Bolas, eu conheço Curitiba há mais de 300 anos. Sou tão curitibano quanto o ligeirinho, o Jardim Botânico e o cachorro quente com duas vinas. Mas não conto tudo isso e apenas respondo: “Conheço”. O mendigo (era um mendigo) se espantou: “Conhece?”. Evito falar que estive na fundação de Curitiba em 1693 e confesso: “Morei lá”. Aí o homem se animou e falou que era de Santa Felicidade, o bairro italiano: “Santa Felicidade, Madalosso, saca?”. Eu sacava. Madalosso é o restaurante mais tradicional de lá. Caro pra burro.
E só então o homem começou a contar uma história familiar qualquer, pra justificar o fato de estar na rua. Não prestei muita atenção. Essas histórias são todas iguais. Sabia que em seguida viria o inevitável pedido. Dinheiro ou coisa que o valha. Eu já havia decido ajudar. Que droga, é coincidência demais um sujeito vir jogar essa história de Curitiba justamente pra cima de uma das poucas pessoas em Brasília que vieram de Curitiba. Não venham me falar em acaso. E então ele fez o pedido, que não era dinheiro, mas uma marmita de cinco contos. Paguei e o vi comprar. 27 anos, o sujeito. Desejou-me uma porção de coisas boas e foi então comer, esse meu conterrâneo.