A Mulher Amada
Amigos, perdi meu voo. Dessa vez programei-me como deveria: comprei a passagem com antecedência e fiz tudo como manda o figurino. Entretanto, deitei-me demasiadamente tarde da noite e não tive forças nem quem me despertasse na manhã do embarque. Como castigo não consegui remarcar minha passagem e fui posto no cantinho da disciplina desse terminal frio, com pessoas indo e vindo, histórias surgindo e eu sem meu final feliz. Porém, enquanto a vergonha me impede de escrever uma terceira história narrando mais uma viagem frustrante, fico aqui sem saber o que fazer, aguardando minha hora de embarcar. Passaram doze horas e eu não cheguei a meu destino. E o que mais me entristece é a solidão do banco de concreto. É agora que só penso a mulher amada, bom seria tê-la ao meu lado. Quem sabe a conheço de fato; certeza é o vento frio soprando meu rosto e a privação ajudando-me tracejar as qualidades da mulher amada. Quem é ela?
A mulher amada pode chamar-se Joana, Nair, Rafaela, Maria, Cecília ou Josefina Guilherma Pires Coimbra Silva. Marciana, pode ser. Pode ser também plutoniana, venusiana, saturnina, nascida em Chicago ou moradora de Bangu. Ou de Adamantina ou de Niterói ou de Cocal dos Alves. A mulher amada pode ser professora universitária e morar longe, dona de bar e vizinha de porta. Vendedora de catálogos, farmacêutica, fisioterapeuta, jornalista, analista de riscos, catadora de marisco, educadora física, deseducadora sentimental ou concurseira profissional.
Ela pode ser dona de pernas compridas e carinhosamente te chamar de Benhê, Nem ou Inho. Ser dona de um corpo falso magro e saber dizer como ninguém “eu te amo” apenas com o olhar. Os olhos maquiados da mulher amada disfarçam as noites mal dormidas e as tardes reprimidas atrás de um balcão. Mas ela não é de reclamar muito, prefere desabar seu corpo nos braços de quem ama e pedir colo. A mulher amada desenha-se em todas as formas: seios sensíveis, sombra escura, coxas sensuais, saia bandage, esmaltes com nomes estranhos e aquela gordurinha no lugar certo. Ou nos lugares certos. Não importa se a mulher amada é magrinha, gordinha, baixinha ou altinha. Ela consegue te provocar, fazer você tomar banho gelado na madrugada e entregar-lhe a senha bancária.
Esperta. Além de esperta, inteligente. Ela sabe onde fica o nervo ciático, dá uma aula sobre a origem dos nomes, é detetive aguçada, te veste adequadamente dos pés à cabeça e procura seu horóscopo do dia. E por sinal, o signo da mulher amada combina com o seu. Se não combinasse você faria como eu e diria não acreditar nessas coisas.
Eu criança inocente e usando chinelos simplórios; minha mulher amada beirava minha estatura e calçava sandálias de plástico. Gostava dos cigarrinhos de chocolate que eu costumava carregar comigo. Me pirraçar era a sua maneira de dizer que me amava. Tentar bater-me, que não vivia sem mim. Depois, eu crescendo, as mulheres já não me acompanhavam tanto na altura e era outro o amor de minha vida. Morava na rua de trás e eu explicava-lhe matemática às terças de tarde.
E agora, os mesmos chinelos já não são simplórios e os cigarrinhos de chocolate proibidos; eu continuo sendo chamado de bobo pelas mulheres amadas que me fazem pirraça e quiçá algumas queiram realmente me bater. Mas o que me importa, se encontrei a minha verdadeira mulher amada? Ela com seu corpo falso magro, não gosta de vestido preto e ainda sente vergonha em me confessar sua paixão. Aliás é esse o problema da minha mulher amada: ela é somente amada e não amadora, amante, amorosa! Enquanto escrevo esse texto recebo um tanto de mensagens dela, falsamente despretensiosas, reclamando por minha atenção. Essa é a minha mulher amada, fingindo que não sente nada por mim e não percebendo que o que finge já não me engana mais. Ou será que minha mulher amada realmente não me ama e o meu destino será viver nessa solidão? Pena, não poderei responder, ouço anunciar minha partida e partido sai meu coração.