Não Dê Ouvidos
- Os fones de ouvido estão proibidos.
A frase, ou melhor, ordem reverberou no tímpano distraído e rasgou um tilintar desafinado em quem esperava sentença mais branda. Desconfiavam de medidas pouco confortáveis, mas desconheciam os limites da maldade hierárquica. “Pensei que tirariam o café”, lamentou uma voz sem rosto, amparada no tijolo humano que se condensava. Alguns cochichavam embaralhados na tentativa de converter o resmungo oco em força repressiva. Finalmente, outros arquitetavam mentalmente estratagemas sinistros, quase científicos, para disfarçar o vício sem serem detectados. “Fone cor da pele por dentro da camisa. Tem que funcionar, tem que funcionar!”
Não funcionou.
A massa corcunda, de olhar vazio, escorregava sem prazer de volta à trincheira, que antes fora a mesa de trabalho. O próprio orador contemplava o silêncio doído com a mente confusa. Havia feito o certo, mas angustiava os argumentos frívolos defendidos às pressas pela, agora, entidade máxima.
Deixo claro que as lamúrias que se enterram aqui não devem ser interpretadas como lágrimas teimosas, fruto da incapacidade adolescente de administrar hábitos voláteis. O rancor rebelde fura o grito porque o ambiente em questão exige do conforto mental doses cavalares de criatividade. Quanto mais, melhor.
No entanto, a ditadura empresarial constrói condutas que atravessam as interpretações comunitárias e repousam no ego autoritário de quem as defende. A falha, infelizmente, reside na falta de sensibilidade para perceber que o estímulo criativo advém do delicioso confronto de raciocínio, fruto dos atritos sonoros que definimos como essenciais. Os reflexos musicais entorpecem nossa percepção e deixamos de imaginar como ordinários, filhotes da inércia hostil, passando a estimular históricos inusitados e direcioná-los para soluções inéditas.
O caos imaginário, causado pelo silêncio que distorce, movimenta o fluxo pensante para a vala dos conceitos precipitados, cotidianos. Como alinhar idéias se elas morrem antes de alcançarem seu ápice criativo? Telefone gritando, risadas de terceiros, teclas estaladas. Tudo isso fere a linha de pensamento, quando deveria flutuar no imaginário individual e repousar no alívio musical que definimos como inventivo.
Curiosamente, o retrato desta situação foi dissecado sem que as informações fossem divulgadas diretamente a mim. Interpreto o acontecimento baseado no foco triste dos que me rodeiam na rotina diária. Fantasio o cenário na insatisfação de uma equipe que teve seu núcleo de liberdade afogado no progresso organizacional. Eutanásia criativa, se posso ser mais claro.
Quando entrei neste palco, poucas semanas atrás, não sofri diretamente. Filho adotivo do pós-trauma, o paraíso comparativo não servia como critério. Funcionário novo, regras novas e obediência inerente aos processos de inclusão departamental. Sim, eu aceito calado.
Mas quando enxergo os ouvidos nus, reféns dos ruídos sem permissão, e a tristeza evidente de quem acordou em terreno calado, congelo meus critérios. Então, fecho os olhos e imagino um processo de criação onde cada um escolhe o som que determinará seu próximo balanço neural, cada um é dono das emoções que defende e cada um sorri a própria satisfação profissional.
Isso sim, soaria como música para os nossos ouvidos.