O mito da maternidade
Tenho como lembrança de minha maior e mais profunda auto reflexão, uma das noites em que passei na maternidade do hospital após ter dado a luz. Éramos apenas nós duas no meio da madrugada e sentei-me perto da janela do quarto, pensativa. Dentro de minhas divagações, questionei se estaria pronta para aquela nova fase de minha vida, afinal, não era mais apenas filha, mas agora também era mãe. Indagava se teria os recursos necessários para cuidar e educar aquela incrível criaturinha que dormia em meus braços. Entretanto, uma questão me afligia com considerável intensidade: um amor incondicional permearia nossa relação?
Apesar da maternidade ser uma condição inerente à mulher, não é determinada por si e em si, apenas. Sim, somos capazes de gerar um outro ser e parir, mas ser mãe não se constitui unicamente em tal ato, assim como o sentimento materno de cuidar, proteger e, sobre tudo, amar, não se fundamenta de maneira inata para todas as mulheres de modo absoluto. Não raro observamos que muitas não possuem tais determinantes e, mesmo havendo um hipotético instinto materno em cuidar e proteger, o sentimento não está necessariamente contextualizado, ou vice-versa.
Através da cultura vivenciamos um certo olhar romântico e idealizado o qual circunda a maternidade, como se apenas estar grávida ou mesmo ter um filho transforma o mundo todo em cor de rosa e, por conseguinte, somos atravessadas por um sentimento avassalador e incondicional, imputando uma condição a priori à mulher. E quando isso não acontece? Quando simplesmente precisamos nos adaptar e observamos cair por terra, inertes, o clichê da maternidade?
A gravidez carrega a simbologia intrínseca de continuação da vida, atribuindo à mulher a responsabilidade maior de sua manutenção. Insegurança e receio são sentimentos naturais que podem emergir durante a gestação e/ou mesmo depois de dar a luz. Desponta-se a enorme necessidade de expressão a respeito, principalmente por conta do abismo entre realidade e idealização, desconstruindo o mito da maternidade sobre o qual somos imbuídas. Muitas mulheres sentem culpa e questionam até mesmo sua idoneidade e caráter quando não desenvolvem, juntamente com a maternidade, sentimentos desejados e correspondentes às expectativas. É muito mais comum do que se imagina e do que se fala ampla e abertamente a respeito que emoções ambíguas nos atravessem durante este período. Ter um outro ser crescendo dentro de você pode não ser tão poético, mesmo quando a gravidez é bem-vinda. Receio e dúvida se o bebê nascerá perfeito e "normal" são comuns. Sem falar do parto, que, apesar de ser um fenômeno natural para toda espécie animal viva, não é um ato isento de certa dose de agressão para a fêmea. A mulher necessita se adaptar a esse novo papel no seu meio ambiente e na sociedade e, a perda da identidade pode se inserir neste contexto onde esta passa a ser "a mãe de alguém".
Desmistificando a fantasia e vivenciando de maneira mais consciente, a responsabilidade para com o outro é tão importante quanto sentimento e dedicação. Laços de afeto, carinho e cuidado se estabelecem no desenvolver da relação e não a partir de um teste cujo resultado foi positivo, somente.
Ouso dizer que, em uma relação onde o amor é conquistado diariamente, a cada ato de alimentar o bebê com o próprio recurso, olho no olho, noites em claro nas quais apenas aqueles dois seres, mãe e filho, testemunham o transcorrer da madrugada, em companhia e cumplicidade, ou em cada simples ato de cuidar daquela pequena pessoinha, talvez, esta relação se consolide de maneira mais plena, saudável e coerente.
O amor incondicional tal como preconizado nem sempre é a priori, mas cresce durante o processo relacional e, talvez, seja até mais verdadeiro quando construído e desenvolvido juntamente com o estabelecimento do vínculo entre mãe e filho. Laços de afeto podem estar presentes desde o primeiro momento, mas se intensifica com a relação.
O amor não é incondicional, apenas, mas condicionado e condicionante. O amor é conquistado dia a dia na convivência e por mérito próprio daquele pequeno e incrível ser.